É o Facebook, estúpido!
O escândalo da Cambridge Analytica, retratado no novo documentário da Netflix, é uma mera distração. A única distorção que a empresa fez com sucesso foi sobre as suas capacidades.
Vale a pena ver o documentário “Nada é privado: o escândalo da Cambridge Analytica”, produzido pela Netflix e que conta a história de como, supostamente, uma empresa de marketing interferiu no resultado das eleições de duas das maiores democracias do mundo.
São duas horas em que se assiste a uma tentativa de atribuir à Cambridge Analytica e aos seus diretores a capacidade de entrar na cabeça das pessoas, manipulando-as e conseguindo, como resultado disso, a vitória de Donald Trump nos Estados Unidos e da campanha do Brexit no Reino Unido.
Apesar dos esforços dos produtores do documentário, o que fica claro é que as capacidades da Cambridge Analytica foram altamente sobrevalorizadas e que a única distorção que a empresa conseguiu fazer foi sobre si mesma.
Como escreve Yuval Noah Harari em “21 Lições para o século 21”, “os humanos pensam através de histórias e não através de factos, números e equações. E, quanto mais simples a história, melhor.”
A história da Cambridge Analytica é simples e tem todos os elementos necessários para ficar na memória das pessoas. O argumento parece feito para a série “Black Mirror”: fala sobre um futuro distópico, onde um maquiavélico diretor de uma empresa de marketing encontra, aliando psicologia a tecnologia, uma forma de manipular as multidões e, com isso, consegue distorcer eleições e alterar mesmo o curso da História.
Há uma razão para esta história ser contada assim. É que esta foi a melhor maneira que Alexander Nix, ex-CEO da Cambridge Analytica, encontrou para diferenciar a sua empresa de uma multidão de consultoras de marketing político, que têm todas acesso aos mesmos dados e utilizam todas as mesmas técnicas.
Não interessa que o modelo de negócio, por enquanto legal, do Facebook seja exatamente aquilo que a Cambridge Analytica é acusada de fazer: construir perfis psicográficos das pessoas e vendê-los aos anunciantes para que estes as convençam a comprar os seus produtos. Hoje em dia, quem não sabe isto ou vive em reclusão ou é extremamente distraído.
Também não interessa que a primeira campanha de Barack Obama para a presidência dos Estados Unidos tenha ficado conhecida como um case study pioneiro e de sucesso na utilização das redes sociais para fins de marketing político. Mas o que é os estrategas de Obama faziam nas redes sociais? Estavam a partilhar fotografias de gatos ou a hipersegmentar as audiências com base nos seus perfis e a dar-lhes os conteúdos com maior probabilidade de as fazer votar na campanha democrata?
Também não interessa que a Cambridge Analytica tenha contratado Brittany Kaiser para estratega da campanha de Trump exatamente pela sua experiência com redes sociais na campanha de Obama.
Vamos esclarecer uma coisa: Donald Trump é um ser desprezível e a sua eleição para presidente da maior democracia do mundo é algo que deve deixar qualquer pessoa preocupada. Daí a necessidade de racionalizar a sua vitória como algo maquiavélico e contranatura. O facto de uma grande parte do eleitorado norte-americano se sentir traído pela narrativa económica liberal e pró-globalização não é uma história suficientemente forte.
Infelizmente para Alexander Nix, as histórias que criou, tanto para si como para a sua empresa, eram boas demais, quase irresistíveis, para não o tornarem no bode expiatório perfeito para algo muito mais grave que é a forma como as empresas tecnológicas, nomeadamente o Facebook, usam os dados das pessoas.
Resta saber se a queda da Cambridge Analytica servirá apenas para fazermos uma catarse de dois acontecimentos políticos extremamente polarizadores ou se nos chama a atenção para a regulação e utilização dos nossos dados por parte das grandes empresas de tecnologia.
“É a economia, estúpido!” Esta frase ficou célebre nas eleições presidenciais de 1992 disputadas entre Bill Clinton e George H. W. Bush. Foi escrita por James Carville, estratega de Bill Clinton, e afixada nos escritórios da campanha. Numa altura em que não existiam redes sociais, este era um dos principais temas em que os envolvidos na campanha se deviam focar quando telefonavam para convencer os eleitores indecisos. Foi determinante na vitória de Bill Clinton e tornou-se uma das expressões mais repetidas pelo mundo fora.
No próximo ano, 28 anos depois dessa campanha — que deu vitória a Bill Clinton –, teremos novamente eleições presidenciais. Talvez esteja na hora de mudar a frase: “É o Facebook, estúpido”.
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