Os sindicatos, a lei e a coerção

A actuação do Governo enquanto árbitro não pode ser confundida com a do jogador. Ou seja, não cabendo ao Governo tomar parte das negociações, cabe certamente ao Governo a avaliação do setor.

A ofensiva dos sindicatos de motoristas, que entregaram o pré-aviso de greve a começar no próximo dia 12 de Agosto por tempo indeterminado, segue a estratégia que seria de esperar de sindicatos que estão exclusivamente preocupados em defender os seus sem olharem a meios. É uma estratégia que dá mau nome ao sindicalismo.

Em “Free to Choose”, Milton Friedman questiona: “Como podem os sindicatos aumentar os salários dos seus membros? Qual é a principal fonte do seu poder?” (p.285). A resposta, avança o autor, reside na capacidade de os sindicatos manterem sob controlo o número de empregos disponíveis ou, alternativamente, de manterem sob controlo o número de pessoas disponíveis para os ditos empregos. Por outras palavras, o poder dos sindicatos está na capacidade de excluir todos os que deles não fazem parte.

Foi, precisamente, essa a primeira meta que os sindicatos procuraram para os seus quando, em Abril, decretaram a primeira greve. A meta consistia em adicionar às convenções laborais do sector uma categoria profissional própria referente ao transporte de mercadorias perigosas que, naturalmente, abriria depois caminho para reivindicações salariais. E assim se enunciou o primeiro objectivo – quer no acordo de 18 de abril, estabelecido com a associação patronal para ultrapassar a primeira greve, quer no acordo de 17 de maio, estabelecido entre as mesmas contrapartes (e já com acompanhamento do Governo) para ultrapassar o pré-aviso de uma segunda greve que haveria de ser cancelada. Mas não satisfeitos, fazendo tábua rasa do prazo de 31 de Dezembro, estabelecido nos dois documentos como data para a conclusão das negociações, os sindicatos quiseram ir mais longe e, então, o Governo colocou-se a jeito.

O poder de um sindicato, para além do controlo do número de empregos ou do número de empregados disponíveis, é também resultado da sua proximidade ao Governo, sendo tanto maior quanto mais elevada for a relação institucional entre sindicatos e órgãos governamentais. É por esta razão que a generalidade dos sindicatos procura negociar directamente com o Governo central e não com entidades descentralizadas. E é aqui que chegamos à segunda ofensiva destes sindicatos.

Depois de terem conseguido chamar o Governo, como observador, para a mesa das negociações, conseguiram agora que fosse o próprio ministro das Infraestruturas e Habitação a tomar a iniciativa de pedir a liderança das negociações. Lamentavelmente, o ministro mordeu o isco.

Com o Governo ao barulho, a solução para o problema passou a ser política. O ministro está agora sobretudo interessado em minimizar o dano político que o caos associado a uma greve eficaz causará ao governo. Ao mesmo tempo, a rápida resolução do impasse levará também ao ganho político deste ministro que, como é sabido, ambiciona voos mais altos. Assim, por entre tantas conveniências políticas, o custo económico será relegado para segundo plano.

Os prejudicados serão os contribuintes que, muito provavelmente, pagarão as benesses que vierem a ser negociadas com os sindicatos e/ou com os patrões. Citando novamente Friedman, “é o que acontece quando algumas pessoas gastam o dinheiro de outras pessoas noutras mais pessoas” (“another exemple of what happens when some people spend other people’s money on still other people”, p.282).

O ministro é agora o jogador principal. Não surpreende – os governantes socialistas gostam de ser o centro das atenções. Mas, na minha opinião, trata-se de um erro clamoroso porque, para poder ser um árbitro isento, o Estado não pode ser simultaneamente jogador. E é de um árbitro que este jogo precisa. Ora, há uma figura legal no código do trabalho que, nestas circunstâncias, poderia talvez ser espoletada. Trata-se da “arbitragem obrigatória”, que está definida no artigo 508º do código do trabalho, e que pode ser solicitada pelo ministro do trabalho (que, curiosamente, foi substituído nesta contenda pelo ministro das infraestruturas…), assumindo que este sindicato, recentemente criado, representa a vontade dos que outrora subscreveram o acordo colectivo de trabalho actualmente em vigor. É uma premissa que oferece dúvidas e que conviria esclarecer.

O código de trabalho estipula que “O conflito resultante de celebração de convenção colectiva pode ser dirimido por arbitragem obrigatória: (…) por iniciativa do ministro responsável pela área laboral, ouvida a Comissão Permanente de Concertação Social, quando estejam em causa serviços essenciais destinados a proteger a vida, a saúde e a segurança das pessoas” (art.508º, nº1, c)). Ainda a propósito da arbitragem obrigatória, afirma também António Monteiro Fernandes [que] “legitimam-na a frustração da conciliação e da mediação e a inexistência de acordo para a realização de arbitragem voluntária” (p.843, “Direito do trabalho”).

Em resumo, e em face da sequência de factos ocorridos, que vão revelando má-fé negocial, o mecanismo poderia ser aplicável desde que fosse satisfeita a ressalva anterior (o que, admito, é questionável). No processo, seria também forma de conceder alguma utilidade à Concertação Social, a quem, segundo o decreto-lei que regulamenta aquelas situações, caberia propor os árbitros.

No imediato, coloca-se a questão dos serviços mínimos que, em caso de greve, terão de ser prestados. Há três níveis de preocupação:

  1. A definição dos serviços mínimos (que caberá ao Governo);
  2. A definição dos meios necessários à sua prestação (que caberá às entidades patronais);
  3. A disponibilidade dos trabalhadores (em consonância com a orientação dos sindicatos, ou não).

Depois da primeira greve, que nos ofereceu imagens do terceiro mundo, é improvável que não venha a ser necessária nova requisição civil, no caso de esta segunda greve avançar. De resto, a postura dos sindicatos, ao proporem serviços mínimos de 25%, não é mais do que uma afronta. Estão a esticar a corda até ao limite e a pedir a requisição civil que, a acontecer, deveria envolver militares e profissionais estrangeiros.

Antes disso, estão também a pedir que os serviços mínimos sejam definidos numa fasquia elevada. O código do trabalho daria respaldo a isso, na medida em que o “abastecimento de combustíveis” configura como necessidade social impreterível (art.537º, nº2, d)), conduzindo à obrigação de prestação do serviço durante a greve.

A actuação do Governo enquanto árbitro não pode ser confundida com a do jogador. Ou seja, não cabendo ao Governo tomar parte das negociações, nem de as liderar, cabe certamente ao Governo a avaliação da situação concorrencial no sector.

A defesa do “fair play” faz parte da função do árbitro. Assim, há que avaliar se as cartas de condução atribuídas pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes, especificamente para transporte de mercadorias perigosas, estão a sair de forma adequada e em tempo útil, e se a rede de formadores é suficiente. E há que estudar a efectividade da concorrência entre as empresas prestadoras do serviço, e se estas cumprem os preceitos das leis laborais.

Ao mesmo tempo, têm de ser avaliados os investimentos a realizar em oleodutos e infraestruturas relacionadas – aqui sim, poderia ser o ministro Pedro Nuno Santos a aparecer –, com que custos, com que benefícios, e em que modalidades, avaliando também a situação concorrencial de áreas conexas e adjacentes (porque, às vezes, o diabo está nos detalhes).

Assim, do mesmo modo que os árbitros verificam o estado do relvado e das marcações, os pitons das chuteiras e o cumprimento das regras do jogo, também o Governo deve observar as condições e circunstâncias em que se desenrola a concorrência económica, em defesa do consumidor e da liberdade individual de cada um poder levar a sua vida. Inviabilizando que alguns, poucos, imponham aos demais a exclusividade das suas agendas.

Não está em causa o direito à greve, constitucionalmente consagrado e bem legislado, nem a busca de melhores condições profissionais que todas as pessoas de bem respeitam como legítima. Mas, como aqui referi na semana passada, sendo a coerção estatal um mal, é um mal necessário a fim de preservar a liberdade de cada um. É para isso que os cidadãos delegam no Estado o monopólio da coerção. Fazem-no para tornar possível a vida em sociedade, fazendo valer o cumprimento da lei. Sem cedências a interesses específicos nem a conveniências políticas.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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