Cinco actos para uma legislatura dos diabos
Agora todos são adeptos de “contas certas” desde pequeninos. Esta será a mais importante aprendizagem da derrocada de 2011. Só se lamenta que tenha sido necessária tanta devastação económica e social.
Foram quatro ano surpreendentes que, parece-me, ninguém anteciparia na noite eleitoral de 2015. O Diabo não chegou, não houve nenhuma tormenta ou recaída económica e financeira. Em vez disso tivemos mudanças de posição, agendas programáticas viradas do avesso, guinadas de direcção, evoluções rápidas em temas centrais. Foi, nesse sentido, uma legislatura dos diabos, que nos foi surpreendendo em relação ao “status quo” político e ideológico de décadas.
Em cinco tópicos do género “quem diria?” destes quatro anos.
- Poder, o grande calmante de radicalismos – Não é um fenómeno novo. Antes pelo contrário, é o que mais se vê por esse mundo fora: partidos e políticos com agendas mais radicais, extremistas ou de protesto transfiguram-se quando se aproximam ou acedem ao poder. O pragmatismo dado pela realidade vem à superfície e as prioridades alteram-se. É um clássico – os Verdes alemães na década passada são um exemplo disso, o Syriza grego dos últimos anos é outro – mas por cá nunca tinha acontecido com esta evidência. E aconteceu porque, pela primeira vez, Bloco de Esquerda e PCP tiveram durante quatro anos a faca e o queijo na mão: a vida do governo dependia de ambos. E entre a viabilização do governo socialista e os princípios económicos que sempre defenderam, optaram pelo primeiro. Fizeram bem. O país, em processo de recuperação de credibilidade e de acesso a condições decentes de financiamento, não podia entrar numa aventura de destino imprevisível mas que não traria nada de bom. A enorme plasticidade programática demonstrada pela extrema-esquerda fez com que muitos – eu próprio incluído – se tivessem enganado redondamente na longevidade desta experiência governativa que alterou estruturalmente o conceito de “arco da governação”. Um pragmatismo que também contaminou o PS e a sua histórica desvalorização da importância da redução do défice.
- Espartilho de Bruxelas? Qual espartilho? Não sinto nada – De repente, deixou de se falar nas regras de Bruxelas, no Pacto Orçamental que era fundamental rever, nos espartilhos impostos por alemães, holandeses, finlandeses, austríacos e outros países com a mania da ortodoxia. O “flirt” com o tom desafiante inicial do Syriza e de Yanis Varoufakis depressa foi esquecido. No Orçamento do Estado para 2016 o governo e Mário Centeno ainda tentaram apresentar uma proposta inicial que pisava linhas amarelas. O Governo corrigiu os números e o desafio ficou por aí. Foi um teste do novo governo à Comissão? Foi uma tática para acalmar os parceiros à esquerda, essenciais para a aprovação do documento? Não sabemos. O que se sabe é que foi o primeiro e último braço-de-ferro orçamental com Bruxelas. A partir daí o aluno que começou por prometer mudar as regras na sala de aula tornou-se um zeloso cumpridor, mostrando orgulho em ir além dos objectivos fixados. E Centeno acaba presidente do Eurogrupo, a improvável cereja em cima do bolo.
- Agora todos somos adeptos das “contas certas” desde pequeninos – “Contas certas”. O mesmo é dizer orçamentos do Estado equilibrados, com as despesas próximas das receitas, défice próximo do zero ou mesmo – sacrilégio – um excedente orçamental. O que não se disse durante anos da “ditadura do défice”, da “obsessão orçamental”, de como a contenção da despesa punha em causa o crescimento económico e o Estado Social, de políticas preocupadas mais com números do que com as pessoas. Tanto barulho para acabarmos aqui: do CDS ao Bloco de Esquerda não há quem não defenda as “contas certas”. Mais: todos dizem que sempre as defenderam, o que nos leva a pensar que as três vezes em que estivemos à beira da bancarrota simplesmente não aconteceram. O PS está, agora, visivelmente orgulhoso do curriculum orçamental que começa a ter para apresentar, depois do cadastro financeiro da anterior governação: o défice mais baixo da democracia, provavelmente tão baixo que até desaparece. O BE e o PCP também se vão colocando no campo desta fotografia, tanto quanto a sua histórica aversão ao assunto permite. Mas é indiscutível que o país ganha com défices baixos. As centenas de milhões de euros de poupança anual na factura nos juros têm a assinatura de dois Mários: o Draghi do BCE, pelo guarda-chuva que deu aos investidores que compram dívida pública, mas também do Centeno das Finanças, que com os vetos de gaveta de uma parte da despesa inscrita nos orçamentos foi ajudando a credibilizar o país apresentando défices sempre mais baixos do que as previsões acordadas com Bruxelas. Sempre além da troika, como se diria noutros tempos.Era interessante calcular o efeito multiplicador, a alavanca que tem a redução do défice. Para um país endividado como o nosso, uma redução de um ponto no défice do Estado provoca novas descidas de quanto, pelo efeito de credibilização da política orçamental e sua transmissão aos juros cobrados ao país?Esta será a maior e mais importante aprendizagem da derrocada de 2011 e só se lamenta que tenha sido necessário ir tão longe na devastação económica e social para incorporar o óbvio: orçamentos equilibrados ao longo de ciclo económico são os que melhor defendem os interesses do país e dos que mais precisam do Estado.
- O investimento público é decisivo? Tem dias. E estes quatro anos foram dias “não” – As cartas com juras de amor escritas ao investimento público, ficaram, desta vez, arrumadas numa gaveta sem ser enviadas. Ano após ano, orçamento após orçamento, o investimento público – entendido aqui no seu significado económico de “despesa de capital” – foi talvez a maior mentira orçamental deste governo. A verba estava lá e era aprovada pelos deputados mas já se sabia: não ia ser executada porque era a grande variável de ajustamento da execução orçamental ao longo do ano. Ainda este sábado o Expresso noticiava: “Centeno prometeu um crescimento de 31% mas só conseguiu 3%. A este ritmo vai poupar mais 1,4 mil milhões de euros”. Foi assim em cada um dos anos, ao ponto de nesta legislatura o Estado ter investido menos do que na anterior, a tal da troika e da destruição do Estado.
O mesmo se passou com a despesa corrente, destinada ao funcionamento regular dos serviços e que foi sendo cortada à margem do orçamento aprovado através de cativações.Não há milagres e a frase “não há dinheiro para tudo” foi entendida na prática por quem, por regra, demonstra dificuldade em entender a aritmética mais simples e assumir as opções que ela impõe.O país fica mais bem servido com investimento público cortado a motosserra do que com uma nova crise orçamental. Os que defendem que no gastar mais é que está sempre o ganho é que devem rever as suas notas. - A dívida pública deixou de ser um problema inultrapassável – A dívida deve ser reestruturada, renegociada, cortada… Escreveram-se manifestos em 2014, assinados por gente da direita à esquerda – bem sei que estes classificadores estão em desuso nos dias que correm mas aqui ficam, à falta de melhores para mostrar a diversidade de pessoas como Manuela Ferreira Leite, Bagão Félix, Francisco Louçã ou Carvalho da Silva. Disseram-se coisas, para o justificar, como: “de modo a criar condições para que haja crescimento e emprego, porque sem isso [Portugal] nunca sairá da crise” – esta frase é de João Cravinho, aqui. O assunto foi discutido na campanha de 2015. Depois disso, o PS lá acalmou as exigências do BE com a criação de um grupo de trabalho que fez um relatório para a gaveta. Estávamos em Abril de 2017 e desde então nunca mais se ouviu falar do assunto. E a dívida lá tem diminuído o seu peso no PIB, ao ritmo permitido pela execução orçamental. Não resultou na catástrofe indiciada pelo manifesto de 2014 nem impediu, pelos vistos, o sucesso económico agora apregoado pelos partidos que viabilizaram o governo. E até deixou de ser um tema central nesta campanha eleitoral, como se tem visto.Quando vamos fazendo o nosso trabalho de casa, reduzindo o défice e contribuindo para a baixa da factura dos juros as coisas correm melhor e não precisamos de expedientes arriscados e de recorrer a terceiros para corrigir os nossos próprios erros. Ainda bem que a dívida pública deixou de ser um alíbi para deixarmos de fazer o que depende de nós.
Mas se estão com falta de assunto, querem um tema a sério? A crise climática é real, importante e exige medidas duras e de longo prazo. E agora que todos são de contas certas desde pequeninos, querem um outro défice para se preocuparem? Olhem bem para o défice externo. Voltou a aparecer e está em valores próximos dos de 2011. Bem sei que não é tão mediático nem se presta tanto à disputa política para o telejornal do dia, mas por isso também é mais perigoso: provoca danos de forma silenciosa e quando dermos conta já pode ser tarde demais. Olhem que aquilo de sermos uma espécie de Mississipi da Europa porque estamos na mesma zona monetária não era verdade, como percebemos.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico
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