A Alta Velocidade é imprescindível a Portugal

A linha Lisboa – Porto é um dos investimentos de maior valor acrescentado para o país para as próximas décadas.

A minha opinião é simples: não existirá real evolução ferroviária em Portugal sem uma linha de Alta Velocidade Lisboa – Porto. Quem vos diz que quer apostar na ferrovia ou terá de ir por aqui ou vos está a enganar.

Os últimos estudos do TGV, agora com mais de 10 anos, apontavam para o limiar mínimo de rentabilidade da obra um tráfego anual entre 4,1 e 5,5 milhões de passageiros, o que se projectava para 2030. Ora este tráfego, hoje em dia, já foi ultrapassado só na ferrovia, havendo a juntar quase mais um milhão de passageiros do modo aéreo que, sem dúvida, colapsaria em favor dos comboios se Lisboa e Porto estivessem a apenas uma hora de distância (realço aqui o ridículo que foi assistirmos recentemente à inauguração de uma ponte aérea para apenas 300 quilómetros – difícil encontrar outros casos em países europeus nas últimas duas décadas).
Mas se os números não convencerem para uma obra que ronda os 4.500 milhões de Euros, temos de pensar nas alternativas que temos. Se o objectivo é apostar na ferrovia, então pensamos em:

  1. Aumentar os passageiros nos tráfegos de longo curso
  2. Aumentar os passageiros junto às grandes cidades
  3. Aumentar dramaticamente o tráfego de mercadorias

A actual linha do Norte é tal e qual como era a Nacional 1 antes de ser feita a primeira auto-estrada Lisboa – Porto: saturada pela convivência de tráfegos demasiado heterogéneos. Nas áreas urbanas não conseguimos ter mais oferta porque têm de passar os comboios rápidos, os comboios rápidos teimam em não baixar das cerca de 3 horas (tempo alcançado pela primeira vez em 1977… há 42 anos!) porque há demasiado tráfego lento e o traçado é mau e por fim os comboios de mercadorias queixam-se de terem longos períodos do dia onde nem conseguem passar.

Quanto mais heterogéneos os tráfegos, menor a capacidade da via. Tal sucede porque se admitirmos que dois comboios passam espaçados por três minutos, o comboio mais rápido terá vir suficientemente atrás de um comboio lento para que no último ponto comum (última estação do percurso ou a zona onde se faz a ultrapassagem) tenham essa distância. Isto significa por exemplo que se um urbano Aveiro – Porto chegar ao Porto às 20:00 e tiver saído às 19:00 o comboio rápido seguinte poderá chegar ao Porto às 20:03 e, de modo a poder circular à máxima velocidade de Aveiro ao Porto, deverá ter saído às 19:28, pois apenas demora 35 minutos (e a linha só permite velocidades superiores a 160 km/h em metade desse troço). Ou seja, entre as 19:00 e as 19:28 não sairão comboios de passageiros de Aveiro para poder possibilitar uma marcha sem ultrapassagens, onde o comboio urbano perderia provavelmente mais 8 a 9 minutos e, generalizando-se, perderia todo o interesse comercial – passaria a ser demasiado lento. Por isso não queremos por comboios de passageiros a serem ultrapassados muitas vezes – demora tempo.

Por aqui se percebe o “espaço” deixado vago na linha para podermos ter tráfegos tão diferentes, sem prejudicar demasiado o que são as virtudes de ambos. Esse espaço é ineficiência e esses espaços são aquilo que comprime a capacidade da linha do Norte, onde, hoje em dia, há cerca de 50% da sua extensão onde a saturação supera os 100% – ou seja, onde circulam mais comboios do que os teoricamente admissíveis.

Tal significa que muitos comboios são traçados sem garantia de circularem sempre com sinais verdes e, portanto, são postos em circulação assumindo abrandamentos ao longo da linha para se irem compatibilizando com os restantes comboios – sempre que um comboio passa por um sinal amarelo, fá-lo a velocidade reduzida. E se encontrar um vermelho, pára.

Este exemplo muito simples do que é a dinâmica das circulações ferroviárias e a gestão de capacidade representam o problema clássico que originou as linhas de alta velocidade francesas, ainda na década de 1970 – quando há demasiados tráfegos de distintas tipologias, nem os comboios rápidos podem tirar partido das possibilidades que o traçado permite (velocidade máxima) nem os comboios lentos podem ser tão numerosos como a sociedade necessitaria.
Isto mostra desde logo porque é simplesmente inútil pensar em reformular o traçado da linha do Norte de alto a baixo, pois ainda subsistem muitos troços com velocidades francamente fracas. Mesmo que, por hipótese, os comboios Alfa pudessem circular a 220 km/h em todo o percurso, dificilmente poderiam ganhar muito tempo face à situação actual (onde circulam à velocidade média de 118 km/h), pois todo o restante tráfego da linha estaria por ali e a exigir os tais espaços entre comboios ou as marchas lentas para tudo caber. Nessa hipótese, Lisboa – Porto baixaria no limite para 2h30, aproveitando esse aumento de velocidade apenas nos troços não saturados e onde actualmente se circula bem mais devagar.

Quanto custaria colocar a linha do Norte toda a 220 km/h?

Como 3/4 do traçado da linha não o permite e teria de ser feito do zero, podemos desde logo assumir um custo por km semelhante ao da alta velocidade, o que daria, contas por alto, cerca de 3.000 milhões de Euros. E no fim, ainda continuaríamos com problemas de capacidade e com os Alfas a arrastarem-se em boa parte do percurso, apesar da geometria do traçado em planta permitir 220.

Na realidade, o cenário é pior. É que uma linha de alta velocidade pura é mais barata de construir do que uma linha para usos mistos e de alta performance. É que a linha de usos mistos tem de ter rampas muito moderadas por causa dos comboios de mercadorias e inserir-se nos núcleos urbanos, onde o custo de construção e de expropriação sobe vertiginosamente. Portanto, os tais 3.000 milhões para tirar 15 a 20 minutos estão provavelmente desajustados – seria bem mais.
E esta é a outra razão pela qual se decidiu avançar para a alta velocidade em França e, entretanto, em muitos outros países.

Quando a saturação de uma via é elevada e quando é desejável aumentar a velocidade para os principais comboios, a solução mais barata é construir uma linha de alta velocidade pura – apenas necessita de se aproximar de 2 ou 3 núcleos mais importantes (para os restantes, a interconexão com a rede existente chega), pode ser feita em terrenos de menor valor e, mais importante ainda, pode comportar rampas enormes, com inclinações típicas de 3,5% (mais do dobro do admissível para comboios de mercadorias), o que minimiza a construção de pontes, túneis, aterros ou trincheiras… em suma, aquilo que é mais caro na fase de construção civil.

Neste momento já estamos a ver que precisamos de criar condições para ir mais rápido mas também para podermos ter muito mais comboios lentos na linha do Norte – há falta de oferta de suburbanos nas grandes cidades e o tráfego de mercadorias é fortemente penalizado pela falta de capacidade. E aqui chegados temos três opções:

  1. Uma nova linha de alta velocidade, só para passageiros, por cerca de 4.500 milhões;
  2. Alterar o traçado da linha do Norte, mas sem aumentar capacidade, por cerca de 3.000 milhões;
  3. Quadruplicar toda a linha do Norte – aos 3.000 milhões de cima, haveria a somar provavelmente mais 1.000 a 2.000 milhões para um traçado novo de maior capacidade mas também para aumentar capacidade no tal ¼ da linha do Norte que já permite os 220 km/h.

A opção dois, já demonstrei, é uma inutilidade total. Portanto, se queremos realmente escoar mais comboios em Portugal, se queremos limitar o tráfego aéreo, se queremos optimizar o uso dos aeroportos, se queremos tirar carros das estradas e se queremos passar camiões para a ferrovia, ficamos com a opção 1 e com a opção 3. Ambas têm custos similares, mas só a primeira permite atacar o problema ambiental do transporte aéreo – a segunda opção colocaria Lisboa a cerca de 2h do Porto, apenas.

Não se pense que esta seria uma obra para as grandes metrópoles, só. De facto, além de Coimbra, Leiria e Aveiro que seriam servidas pela nova linha, a interligação da nova linha com a rede convencional clássica, tal e qual como se faz em todo o lado e mesmo em Espanha onde coexistem diferentes bitolas de via, deixaria a Guarda a 3 horas de Lisboa, mesmo sem mexermos na calamitosa linha da Beira Alta. O Porto ficaria a 3h45 de Faro e Évora a 2h30 do Porto, apenas para citar alguns exemplos. Mesmo com as insuficiências de rede que temos, isto seria uma revolução para todo o país, e também isto tem de ser explicado a todo o país.

Outros argumentos típicos contra o TGV (estranho país este onde a sigla de maior sucesso do transporte ferroviário mundial é mal vista…) incluem a suposta prioridade de nos ligarmos a Espanha, a capacidade de aceleração dos comboios numa distância apesar de tudo curta (300 km) ou até o seu preço.

O argumento da ligação a Espanha só é admissível a pessoas distraídas – com a construção da linha Évora – Caia, que se iniciou já, Portugal terá entre o Pinhal Novo e Badajoz uma linha apta a 200 km/h, autorizando o seu traçado em planta 250 e mesmo 300 km/h em quase toda a sua extensão, necessitando apenas de revisão de sinalização para a aproveitar.

A linha de alta velocidade pura apenas tiraria 10 a 15 minutos, ao evitar a volta por Casa Branca e Évora que faz a linha do Alentejo. O resto do ganho de tempo seria com a Terceira Travessia do Tejo (TTT), que se faria para a alta velocidade mas que serviria também para a rede clássica. Ao todo, Lisboa – Madrid poderá ser feito em cerca de 3h10 caso a TTT seja construída, sem necessidade de mais vias do nosso lado, e contando com a linha nova em Espanha, em avançada fase de construção.

Mas e os comboios, que aceleram devagar? Este é o argumento infantil preferido de muitos graúdos que provavelmente não viajam de comboio. Um TGV com 30 anos acelera dos 0 aos 300 km/h em cerca de 4 minutos e 30 segundos, utilizando 10 a 15 quilómetros para tal, a maioria dos quais já percorridos a velocidades acima dos 200 km/h. Centremo-nos nos tempos – 1h15 para 300 quilómetros, com a aceleração dos comboios que existiam há 15 anos. É um não tema.

Por fim, os preços. Ah, os preços! Por toda a Europa abundam as ofertas high e low cost, sempre em coabitação, aproveitando segmentos de procura diferentes e modelos de exploração e reserva distintos. Como exemplo, o país onde as tarifas mais aumentaram na Europa foi o Reino Unido, devido à saturação da oferta… sem alta velocidade! Já em países como Itália ou Espanha a descida de preços tem sido factual.

Uma linha de alta velocidade é mais barata de operar – o tráfego é homogéneo e fiável, limitando as incidências de exploração que custam muito caro. As tripulações têm um rendimento muito superior, tal como os comboios que rodam muito mais – uma frota mais pequena assegura muito mais viagens. Não há nenhuma razão para um TGV Lisboa – Porto ser mais caro que um Alfa ou um Intercidades, da mesma maneira que é irreal pensar que pode ser mais caro que o avião, tendo custos de operação muito mais baixos.

Com a concorrência a ser possível a partir de 2020, a distância entre duas metrópoles como Lisboa e Porto atrairia facilmente imensas modalidades que farão cá o que fizeram noutras latitudes – as classes sociais de menor poder de compra passarão a fazer muito mais viagens de lazer com este novo modo de transporte, ao mesmo tempo que a clientela de negócios deixará, por fim, o avião. Não é o contrário que se verifica.

Em jeito de conclusão, a saturação da linha do Norte é crítica para toda a rede, já que todos os comboios e linhas rebatem sobre ela. Sem se resolver esse problema, nenhuma solução real existirá para o nosso problema ferroviário. Para aumentar capacidade só há uma opção – realizar uma linha paralela a esta e a opção é já consensual, vertida até no PNI 2030 sob a forma de três troços que serão paralelos em cerca de 1/3 a metade da linha do Norte. E quando chegamos a essa constatação, é sempre mais barato fazer uma linha de alta velocidade pura do que fazer uma para usos mistos – para esses, deixem estar a linha do Norte!

Chamem-lhe TGV, Alfa, Intercidades ou Maria Joaquina. Que o nome não seja o impedimento para a solução mais importante, que é a linha de alta velocidade Lisboa – Porto. PS e PSD já o defenderam e o tempo deu razão ao que foram defendendo alternadamente. E a acessibilidade de todas as classes sociais a esta nova fórmula ferroviária certamente pode prevenir a extrema-esquerda para evitar algumas críticas que, de forma errada, foram feitas noutras geografias deste continente, depressa desmentidas pela realidade.

A linha Lisboa – Porto é um dos investimentos de maior valor acrescentado para o país para as próximas décadas. Exemplos similares lá fora não me deixam mentir e os números de tráfego que existiam em 2007 para o horizonte 2030 já terão sido ultrapassados mesmo com a solução coxa que temos hoje em dia!

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