Navegar à Vista

Portugal está a começar um novo caminho de regresso às minorias governativas, entre sondagens, expectativas dos eleitores e a tentação de poder dos adversários.

Os brasileiros usam a expressão “ruim de voto” para quem é pé-frio no momento da verdade, perante o boletim de eleição. Hesito em escolher se a expressão fica melhor a António Costa ou a Rui Rio. Na Grécia antiga, Heráclito dizia que tudo muda, nada é. É o que nos está a acontecer agora: Portugal está a começar um novo caminho de regresso às minorias governativas, que se equilibram entre as sondagens, a gestão de expectativas do eleitorado e o que os adversários ousam arriscar pela tentação de poder.

  1. Acabou de forma célere o teatro de máscaras: quando ouvimos, perante as primeiras projeções na noite de eleições, a vontade de uma Geringonça 2.0 para quatro anos, ficou clara a forma encontrada pelo PS para responsabilizar os antigos parceiros de governo de qualquer instabilidade para os próximos tempos. De os vincular e tornar reféns de uma perceção global: um novo acordo só não se faz se não quiserem, porque nós, socialistas, apesar de tudo o que dissemos sobre o Bloco de Esquerda durante a campanha, cá estamos disponíveis para continuar a viagem. Sobretudo porque, em contraponto, o PCP é um partido confiável.
  2. Pois, vamos por partes. Primeiro, o PCP. Seria o parceiro ideal, sem acordos escritos nem gritaria na Comunicação Social. Comprometidos, sérios, leais. O sonho perfeito para António Costa que, em troca de um salário mínimo mais alto e uma reviravolta na lei laboral, lhe asseguraria a tranquilidade de quatro anos de governação. O problema é que o PCP perdeu mais de 100 mil votos e as ruas clamam por ação. Para não dizer vingança! Há uma CGTP que está há demasiado tempo excessivamente paralisada e é altura de cumprir o destino: regressar às manifestações, bater-se por Mário Nogueira e os professores, pelos enfermeiros e motoristas, médicos e todos os funcionários públicos, mais pensionistas e tudo o que dependa da imensa mesa orçamental do Estado. E não deixar que outros sindicatos, avulsos e inorgânicos, tomem a liderança na contestação. Estes 4 anos de aparente paz nas ruas foram fatais e é imperioso regressar às trincheiras e aos valores básicos. De uma forma clara, em nome de uma cada vez mais difícil sobrevivência, Jerónimo de Sousa disse a Costa: estamos fora!
  3. Se uns não podem, outros querem demasiado, mesmo sem o merecerem. O Bloco perdeu 52 mil votos, sonhou fazer parte do governo e até se mostrou disponível para um acordo escrito para quatro anos. Um programa conjunto, assim disse Catarina Martins em plena noite de eleições, mitigando a erosão de eleitorado com a derrota da direita e uma possível influência direta no próximo governo. A pairar ficou um horizonte de nacionalizações – a começar pelos CTT, que já não vale nem metade do que o Estado recebeu pela sua venda -, salário mínimo a escalar, uma aposta de três ou quatro mil milhões na Saúde e uma guerra aberta aos privados no setor. Ah, e reversão da lei laboral. E para já, se faz favor! E mais pensões e mais salários para funcionários públicos. Mais, mais, mais. O problema é que a conjuntura está a mudar e o dinheiro não vai chegar da mesma forma dos últimos quatro anos. Mesmo com cativações e o mais baixo investimento público das últimas décadas. Ou seja, manter contas certas vai exigir esforço maior e não é possível uma política redistributiva ainda mais ousada. Resta a António Costa governar sozinho, no fio da navalha.
  4. Rui Rio tem uma fase profética na noite eleitoral: nem a vitória do PS foi tão grande, nem a derrota do PSD foi tão pesada. Se a PàF teve 36% depois de quatro anos de agruras, a cumprir um acordo imposto pela Troika, os quase 28 % assumem-se como um resultado aceitável. É preciso descontar o CDS e o efeito de quatro anos em que tudo correu bem do ponto de vista económico. Os brasileiros usam a expressão “ruim de voto” para quem é pé-frio perante o boletim eleitoral. Hesito se a expressão fica melhor a António Costa do que a Rui Rio: o primeiro-ministro falhou uma vitória dada como certa há quatro anos, quando todos profetizaram a morte da direita nas urnas. Salvou-se com um acordo inédito e histórico na democracia portuguesa, governando quem não venceu as eleições. Depois da melhor conjuntura económica do século acaba muito aquém da maioria absoluta. Se não foi agora, alguma vez será? E por entre o nevoeiro de uma navegação à vista, num governo minoritário que não vai colher a doçura de antigos companheiros de viagem, Rui Rio ainda se afigura como o melhor seguro de vida. E de estabilidade.
  • Jornalista. Subdiretor de Informação da TVI

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