Fumagem e englobamento de rendimentos prediais
Fumagem era um imposto medieval, que hoje seria um pomposo imposto ambiental, ligado ao ius habitandi que o Senhor recebia de todas as casas onde os seus vassalos ou colonos viviam.
Fumagem era um imposto medieval, que hoje seria um pomposo imposto ambiental, ligado ao ius habitandi que o Senhor recebia de todas as casas onde os seus vassalos ou colonos viviam, tendo como contrapartida a possibilidade de nelas ser aceso lume ou fazer fumo. A fumagem era, pois, um rendimento predial que o “senhorio” recebia do seu inquilino.
Anda por aí muito fumo (não aproveitado para fazer a fumagem), sobre o “englobamento dos rendimentos prediais”. Curiosamente num caso em que, contrariamente ao ditado, não descortino fogo. Tenho o enorme privilégio, eu que sempre me considerei independente, de, com uma afirmação que fiz na conversa com uma jornalista, e que não desminto, porque a repetiria aqui sem qualquer pejo, ter sido de imediato colocado, pela opinião pública, que neste caso tem a seu favor o argumento da opinião publicada, como, dentro dos fiscalistas divididos, o que “defendia o englobamento dos rendimentos prediais”.
Ora, a frase da polémica deriva de ter sido confrontado com a questão de saber o que pensava do englobamento dos rendimentos prediais em IRS, englobamento obrigatório, clarifique-se, face ao ter-se tornado público e o Senhor Primeiro Ministro o ter referido expressamente no debate parlamentar sobre o Programa do Governo, que “o englobamento dos rendimentos prediais seria uma tendência (a executar na legislatura, pressupõe-se).
Outras opiniões entretanto publicadas também se focam na questão central que eu pretendi relevar: por onde anda o crivo da constitucionalidade a que, ao longo dos 30 anos de existência do imposto, inúmeras medidas de descaracterização do originário modelo do IRS foram sendo adotadas? Parece, na verdade, que Casalta Nabais tem razão: o artigo 104.º da CRP é uma “narrativa constitucional” e perdeu todo o seu conteúdo normativo.
A ser assim, não pode deixar de reconhecer-se que a adoção de medidas avulsas, visando “penalizar” ou “beneficiar” rendimentos, sem que haja um critério superior à luz do qual essas medidas possam ser sindicadas, permite todos os dislates que, pelas mais variadas razões, no plano político se queiram introduzir no impostos. Os impostos não têm finalidade punitiva e os benefícios “são medidas de caráter excecional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores aos da própria tributação que impedem” (Art.º. 2.º, n.º 1, do EBF).
Eu assisti ao parto do IRS em 1989, como primeiro diretor de serviços do mesmo tive de lhe dar o biberão e viver cinco anos com a espada da inconstitucionalidade das taxas liberatórias (entre outras normas do imposto), em processo que corria no Tribunal Constitucional e agregara os pedidos de inconstitucionalidade de vários aspetos da reforma da tributação do rendimento que em 1 de janeiro entrou em vigor daquele ano deduzidos por um grupo de Deputados do PCP e pelo Senhor Provedor de Justiça (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 57/95) e ninguém, de quem já se pronunciou publicamente, que eu saiba, tem essa experiência.
Sinto, pois, o estrito dever de, quando me fazem perguntas do tipo daquela que me fizeram, me lembrar da Norma Fundamental (artigo 104.º) a ter em conta na configuração do IRS (como escreveu SALDANHA SANCHES “a unicidade do imposto, prevista CRP, constitui a transformação de uma regra de boa administração num princípio constitucional”), colocar como uma das premissas do meu raciocínio as características constitucionais do imposto (unicidade, progressividade e familiaridade) e de, num primeiro tempo da resposta, como sucedeu, ter por pano de fundo o seu enquadramento constitucional.
Ora, se o Senhor Primeiro Ministro tinha falado em “tendência”, eu limitei-me a lembrar a imposição constitucional. O que não significa, necessariamente, uma “tendência”. Clara e objetivamente referi apenas um princípio constitucional. Neste quadro, quero felicitar o Prof. Sérgio Vasques pela esclarecedora entrevista que deu ao ECO. Como ele, entendo que não somos competitivos com taxas de 53% e que ter rendimentos sujeitos a esta taxa e outros a taxas muito inferiores, ainda para mais numa “feira de ofertas” em que o Código se transformou para uns e não para outros, constitui uma discriminação inaceitável. Eu não estou contra, entrando na “nuvem de fumo” em que o tema está a ser discutido, que 500.000 euros de rendas paguem 28%: chamar-me-iam, com razão, um “sádico fiscal”. Mas estou contra que 500.000 euros de trabalho, dependente ou independente, de pensões ou do exercício da uma atividade empresarial, fiquem sujeitos a uma taxa marginal de 53%. Reside aqui, provavelmente, a diferença de perspetiva sobre política fiscal.
E retomando, com gosto, a entrevista do Prof. Sérgio Vasques, apenas discordaria numa coisa e acrescentaria outra. Discordaria do facto de ele considerar um “precedente” a situação originária do IRS e que levou a que nele fossem consagradas taxas liberatórias que, de forma nenhuma, e como então foi dito, “abrangiam categorias inteiras de rendimento”. Acrescentaria uma ideia de “reforma” do modelo a que ele se não referiu.
Recordo que, por um lado, o regime do anonimato então vigente em sede de determinação da titularidade de rendimentos derivados de títulos ao portador não registados nem depositados e da inclusão dos prémios de jogos, sorteios ou concurso, também então protegidos pelo anonimato, não permitiriam senão uma tributação liberatória por retenção na fonte. E, por outro, que o que acresceu a essa modalidade de tributação foi, à luz do critério da oportunidade – que é um critério utilizável apenas em sede política — ao abrigo do argumento aduzido pelo Governo de então (Miguel Cadilhe) que era preciso proteger fiscalmente e tornar competitivo o mercado de capitais então nascente. Por memória, deixo o exemplo em que a alienação de quotas não tinha qualquer benefício relativamente às mais-valias que produzisse e as resultantes de alienação de ações, detidas por mais de 12 ou 24 meses, eram “excluídas da tributação”. Não são, portanto, situações comparáveis.
Acrescento, na linha de outras intervenções públicas sobre o tema, é que o IRS, na sua atual configuração de imposto sobre o rendimento pessoal, esgotou, ao fim dos 30 anos padrão, o seu período de validade. Está exaurido e nos limites da sua elasticidade. Precisa de uma reforma em sentido estrito, isto é, o nosso sistema fiscal ficaria muito mais harmonioso com a alteração de modelo. Qual? Há relatórios de peritos com propostas muito concretas. É sabido que sou defensor de uma solução “flat rate”, mas isso não está agora em discussão.
E essa modificação estrutural tem de ter em conta o que também o Prof. Sérgio Vasques sublinhou: o epicentro da competitividade fiscal do nosso País não se esgota no IRC. Tem necessariamente de incluir o IRS, que também é fator de desenvolvimento económico e social e não pode contribuir, nomeadamente, para a desmotivação para trabalhar ou para o empreendedorismo individual.
Posto isto, tenho de reconhecer que há duas ordens de razões que são um obstáculo cuja transposição exige muita criatividade para que essa reforma possa ser feita: uma de ordem política; outra de ordem financeira.
- No plano político, e no quadro de correlação de forças políticas em que as últimas eleições nos colocaram, pode não existir uma maioria consistente que permita fazê-la. O IRS foi já objeto de medidas ditadas, exclusivamente, por suporte ideológico situado num dos extremos parlamentares e, não raro, senão mesmo sempre, como “moeda de troca”. Uma posição ao centro, prudente, ponderada e que tivesse mais técnica e menos ideologia, não me parece neste momento concretizável.
- No plano financeiro, tem de computar-se em cerca de 6.000 milhões de euros o impacto financeiro negativo que o novo modelo criaria na receita do novo imposto no seu primeiro ano. Nesse ano teriam de devolver-se 3.000 milhões de euros (ver valor de reembolsos de IRS em 30 de setembro de 2019 na “Análise da execução orçamental, pp. 27: 2.950 milhões de euros). Seria politicamente insustentável manter as mesmas tabelas de retenção que retivessem, por excesso, por conta do imposto devido, outros 3.000 milhões de euros. Além de que o imposto oculto que, em nome do IRS, os contribuintes residentes estão sorridentemente a pagar, ficaria a descoberto. A não ser, sem pretender dar ideias, que o montante a reembolsar fosse feito mediante certificados de aforro (como já aconteceu noutros tempos com salários) e a concomitante dívida pública fosse suportável no quadro dos limiares a que Portugal se encontra submetido.
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