Quando os depositantes pagam aos bancos
os incentivos estão hoje conjugados no sentido de uma banca cada vez mais conservadora e para uma actividade creditícia de menor dimensão.
Escrevia ontem o Financial Times (na peça “Most German banks are imposing negative rates on corporate clients”) que 60% dos bancos alemães já praticam juros negativos sobre os seus depositantes empresariais e que 20% também já cobram juros aos seus depositantes de retalho. Na mesma notícia, era ainda referido o exemplo de um dos principais bancos cooperativos na Alemanha, que teria já instituído como prática corrente a cobrança de juro de 0,5% sobre todas as contas de depósitos superiores a 100 mil euros. Enfim, se isto fosse escrito há dez anos, seria a estória do homem que mordeu o cão. Mas, hoje, é mesmo a realidade que, em breve, também chegará a Portugal, se é que não chegou já.
A prática de juros negativos por parte dos bancos comerciais sobre os seus depositantes é a consequência da política monetária do Banco Central Europeu (BCE). À medida que o BCE vai baixando as suas taxas de juro, e adquirindo activos financeiros nos mercados, sucedem-se vários efeitos.
Entre os efeitos directos encontram-se a redução dos indexantes de taxa de juro, como a Euribor, que, reflectindo expectativas quanto à direcção da política monetária, acompanham a redução das taxas de referência, e; a redução do custo de oportunidade do capital que, em face das aquisições que o BCE vai fazendo, faz com que o custo de financiamento dos agentes económicos baixe também, reflectindo de forma transversal a toda a economia o desagravamento financeiro do factor risco.
Surgem então os efeitos indirectos. Ao nível da banca comercial, o principal efeito consiste na redução das taxas de juro (activas) que os bancos cobram aos seus clientes sobre o crédito concedido e que são determinadas pelos indexantes das taxas de juro e pelos “spreads” comerciais. Assim, à medida que os indexantes baixam, e que o próprio “spread” é influenciado (negativamente) pela redução do prémio de risco transversal a toda a economia, as taxas de juro activas tendem a diminuir.
Daqui decorre a compressão das taxas de juro passivas, aquelas que os bancos tipicamente pagam aos seus depositantes – daí o termo “passivo” –, a fim da manutenção da margem financeira da banca, que resulta da diferença entre as taxas de juro activas e passivas.
Ora, da forma que o sistema financeiro tem vindo a evoluir, a expressão “taxa de juro passiva” começa a deixar de fazer sentido. Ou seja, se até os depósitos pagam (em vez de receberem) juros, então, em breve todas as taxas de juro serão activas. E, assim, onde antes havia custos e proveitos financeiros, existe agora a possibilidade de se passar a um novo normal onde só existirão proveitos financeiros. Trata-se de um paradigma, a meu ver inverosímil, que depende crucialmente da disponibilidade dos depositantes em pagarem aos bancos para que estes lhes guardem o dinheiro. Mas, antes disso, há ainda a questão normativa de saber se os juros negativos devem ou não ser permitidos pelo regulador.
Nas últimas semanas, os bancos portugueses têm vindo a aumentar a pressão sobre o Banco de Portugal relativamente à questão dos juros negativos. O argumento dos bancos é o de que, em face da arbitragem regulatória oferecida pela permissão de juros negativos nuns países e não noutros, clientes internacionais têm vindo a realizar depósitos em Portugal a fim de fugirem aos juros negativos permitidos à banca nos seus países.
Em teoria, o argumento dos bancos portugueses faz sentido porque, de facto, a referida arbitragem regulatória constitui um ónus competitivo sobre a banca nacional em benefício de bancos de outros países. Mas o que salta mais à vista no discurso é a vontade de cobrar a comissão fácil que resultaria do juro negativo.
A eliminação de entraves à imposição de juros negativos na Europa faz sentido no âmbito da união bancária e, em particular, no contexto da política monetária do BCE. Na verdade, não faz sentido que numa união bancária os juros negativos sejam admitidos nuns países e não noutros. Como também não faz sentido que o BCE e os emitentes soberanos sejam livres de praticarem juros negativos junto das suas contrapartes, ao mesmo tempo que impossibilitam os agentes privados de fazerem o mesmo. Todavia, a partir do momento em que os juros negativos forem amplamente permitidos, e numa altura em que a concentração bancária continua a aumentar, a maioria dos depositantes bancários poderão ser deixados sem alternativa aos juros negativos.
Noutros tempos, guardar o dinheiro debaixo do colchão seria a alternativa para muitos destes depositantes. Hoje, será ainda a alternativa para algumas pessoas, mas em muito menor número porque as pessoas já não usam nem guardam numerário como dantes. É, pois, nesta expectativa que jogam os bancos ao pretenderem recuperar a margem financeira através da transformação de taxas passivas em taxas pseudo-activas, que na realidade não passam de comissões encapotadas.
Ao invés, no modelo tradicional, a recuperação da margem financeira teria de passar pelo crescimento do crédito e pela actuação ao nível da verdadeira taxa activa. Em resumo, os incentivos estão hoje conjugados no sentido de uma banca cada vez mais conservadora e para uma actividade creditícia de menor dimensão.
Mas o problema é mais profundo e radica na ideia de que a política monetária europeia começa a estar perigosamente assente numa lógica de subsidiação financeira. Senão vejamos. O BCE subsidia directamente os emitentes soberanos ao comprar-lhes dívida em barda e baixando-lhes o custo de financiamento artificialmente.
Por via da redução dos indexantes, o BCE subsidia também as empresas privadas através da banca comercial. E, agora, são os depositantes que gradualmente serão chamados a subsidiar a banca, aumentando-lhes artificialmente os proveitos. Só falta alguém subsidiar os depositantes, mas lá chegaremos se teorias não convencionais, como a do “going direct”, fizerem o seu caminho e vingarem na opinião pública (sobre isto, sugiro o meu artigo “A chover dinheiro” de 18/09/2019).
No meio de tudo isto, resta saber se haverá, ou não, revolta dos depositantes. A banca tradicional está apostada em que não haverá qualquer revolta e quanto mais depressa todos puderem aplicar juros negativos tanto melhor. O depositante, olhando à sua volta e vendo apenas juros negativos, manter-se-á fiel ao seu banco. Mas, do ponto de vista da procura, quão racional será pagar por um depósito se, no limite, entre os bancos existentes no mercado, existirem alguns poucos a praticar juros positivos? E, do ponto de vista da oferta, quão racional será impor um custo aos depositantes se, em face dos incentivos produzidos pela complacência do juro negativo, as oportunidades emergentes para a concessão de financiamento forem de modo a compensar o pagamento de um juro positivo?
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico
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