A emergência climática e a hipocrisia política

Por entre muita hipocrisia política, as barreiras e desafios da transição energética serão formidáveis. Mas estará a opinião pública realmente preparada para isto?

Na tomada de posse da nova Comissão Europeia, Ursula von der Leyen jogou ao ataque e subiu a parada quanto às metas ambientais a atingir na União Europeia durante a próxima década. O objectivo maior da neutralidade carbónica continua a estar previsto para 2050, porém, até 2030 as emissões de carbono serão reduzidas em 50% a 55%, segundo a renovada meta avançada por von der Leyen. Anteriormente, a meta ambicionada era de uma redução de “apenas” 40% até 2030. Não obstante a grandeza do discurso, o caminho não será fácil porque, no balanço, a política económica na Europa, e em geral no mundo, continua a privilegiar a exploração de recursos de origem fóssil. Por entre muita hipocrisia política, as barreiras e desafios da transição energética serão formidáveis.

Os apoios orçamentais. Estima-se que anualmente na Europa são atribuídos cerca de 50 mil milhões de euros em subsídios estatais e incentivos fiscais para a produção e consumo de energia gerada a partir de recursos fósseis. A fatia de leão destes apoios encontra-se nos orçamentos nacionais de cada Estado-membro.

Porém, há também uma parte que sai directamente do orçamento comunitário, que, por sua vez, também financia, através da política agrícola comum (PAC), processos de produção agrícola que potenciam a libertação de metano – outro gás altamente destruidor do equilíbrio climático. A este propósito, recorde-se que a PAC, uma política intrinsecamente protecionista de interesses instalados, continua a absorver cerca de um terço do orçamento comunitário.

O financiamento do investimento em energia. Na semana passada, o ministro da Economia francês, Bruno Le Maire, sempre muito célere em matérias climáticas, passou vergonha ao ser confrontado com um relatório de uma organização não-governamental, segundo a qual 70% da carteira de crédito dos principais bancos franceses, na exposição referente ao sector da energia, estaria dirigido ao financiamento de recursos fósseis. Isto na mesma semana em que Le Maire quis fazer da França o porta-estandarte do combate ao chamado “greenwashing”. Ao mesmo tempo, no outro lado do Atlântico, a banca norte-americana continua alegremente a financiar a exploração de recursos fósseis, numa altura em que os Estados Unidos se tornaram exportadores líquidos de petróleo.

A nova política industrial na Europa. A União Europeia propõe-se agora liderar a produção mundial de carros eléctricos, um segmento de mercado que é liderado pela China e no qual o peso da Europa é residual. A China fabrica mais de metade de todos os carros eléctricos produzidos por ano e, juntamente com os Estados Unidos e o Japão, é quem domina a tecnologia das baterias. Todavia, há na Europa, a começar aqui em Portugal, uma enorme resistência contra a exploração e a refinação de lítio, sem o qual não se fazem as baterias dos carros eléctricos. Há ainda a tempestade perfeita em que está metida a indústria automóvel alemã, que condicionará a política industrial alemã e que, por sua vez, condicionará a tal política industrial europeia.

A regulação dos mercados. Ora, há muito que existe na Europa um mercado de direitos de emissão de carbono (o “EU Emissions Trading System”), no âmbito do qual as empresas poluentes devem transacionar, adquirindo e alienando, direitos de emissão de carbono. Através deste mercado, uma alternativa ao imposto carbónico e que constitui o maior mercado mundial do género, são gerados recursos públicos compensatórios que, para além de desincentivarem a poluição, podem financiar a transição energética. O problema é que este mercado não funciona como deve ser. Para além de excluir sectores criticamente poluentes, como a aviação, tem havido ao longo dos anos a cedência de direitos a custo zero, inviabilizando assim o mecanismo de preço sem o qual nenhum mercado funciona.

As alternativas aos recursos fósseis. Aqui está um problema bicudo de que poucos falam com a profundidade desejada, sobretudo na Europa, porque pouca gente na Europa gosta de reconhecer a reduzida penetração das energias renováveis a nível mundial. De facto, somente 7% da electricidade mundial é produzida a partir do solar e do eólico, estimando-se que a quota de mercado mundial daquelas duas fontes renováveis (mas intermitentes) venha a aumentar para 40%, porém, só em 2040. Ainda assim, em 2040 o solar e a eólica continuarão a ser minoritárias, talvez não na Europa, mas provavelmente sim no resto do mundo.

A falta de infraestrutura. Neste domínio temos a questão da infraestrutura de aquecimento residencial e de fornecimento industrial, bem como a rede de abastecimento de transportes. Em ambos os casos, os investimentos de substituição e de modernização serão massivos, a fim de se lograr a descarbonização. Adicionalmente, existe ainda a questão do armazenamento da electricidade gerada a partir de fontes intermitentes (como o solar e a eólica) durante períodos de maior duração, um domínio no qual não há de momento soluções robustas. Também aqui as necessidades de investimento, que terão de financiar inovação de ponta, serão enormes. Todavia, onde há risco, há também retorno potencial e neste momento não falta financiamento barato para estes investimentos.

E aqui chegados, resta perguntar quanto custará afinal a transição energética? Segundo um relatório publicado pelo Governo britânico, anunciando a neutralidade carbónica para 2050 – e incluindo nas contas globais os sectores altamente poluentes da aviação e da navegação – o custo da transição energética será de um a dois pontos percentuais do PIB, por ano, até 2050. Tal permitiria, por exemplo, a adopção do hidrogénio no aquecimento residencial, ou a abolição de carros a gasolina e a diesel das estradas britânicas. Mas o investimento é de monta. Transpondo aqueles números para Portugal, seria o equivalente a uma despesa de dois a quatro mil milhões de euros (a preços de 2018) por ano até 2050 – cerca de 6% a 11% de toda a formação bruta de capital fixo realizada em Portugal durante 2018. Quem é que se chega à frente?

Em suma, o clima de opinião pública na Europa parece inequívoco e a ciência também. Mas a descarbonização enfrentará agendas conflituantes. E, numa altura em que se fala novamente de política industrial na Europa, a margem de erro na execução dessa transição será também muito elevada. Por isso, o melhor é começar por eliminar os conflitos mais evidentes. Isto inclui a reforma do mercado de direitos de emissão de carbono, para que funcione devidamente e seja mais abrangente, e acabar com o gasto público através do qual se subsidia a produção e o consumo de energia de origem fóssil. Seria um começo razoável, pragmático e com impacto, ainda que também com custos. Mas estará a opinião pública realmente preparada para isto?

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