O elo mais fraco da Europa… de novo
A consolidação económica da Alemanha permitiu-lhe carregar a Europa às costas durante os momentos mais críticos da crise das dívidas. O que será da Europa se a Alemanha passar a elo mais fraco?
Não serão muitos os que ainda se lembram que, no princípio do século, a Alemanha era conhecida como the sick man of Europe devido à incapacidade da economia germânica em atingir patamares mínimos de crescimento. O contraste com os anos mais recentes revela-se, também, na falta de rigor da política orçamental alemã dessa época, a qual – pasme-se – chegou mesmo a violar as regras europeias.
Tais dificuldades foram uma decorrência do choque estrutural resultante da unificação das duas Alemanhas em 1991, a qual forçou a criação de um espaço económico uno, com as mesmas regras e a mesma moeda, mas estruturas produtivas radicalmente diferentes e uma força de trabalho da ex-RDA impreparada para o sistema de economia de mercado.
O resultado foi a fraca expansão do PIB agregado, a explosão do desemprego e a transferência de somas massivas de capital do ocidente para o oriente. O problema estrutural resolveu-se pela mão do chanceler Gerard Shroder com a introdução de reformas de flexibilização do mercado de trabalho, que permitiram reforçar a competitividade do setor industrial alemão que, assim, pode beneficiar em pleno da exponenciação da globalização que se seguiu à entrada da China na Organização Mundial do Comércio.
A partir de 2006, a Alemanha iniciou uma trajetória de forte expansão da atividade, só entrecortada pelas crises financeiras do subprime e da periferia da área do euro. A taxa de desemprego, que tinha atingido 12,1% em março de 2005, caiu para os 5% observados presentemente. A consolidação económica da Alemanha permitiu-lhe carregar a Europa às costas durante os momentos mais críticos da crise das dívidas soberanas e afirmar-se como potência económica indiscutível na Europa e no mundo.
Desconforto conjuntural
Não obstante a pujança da economia desde meados da primeira década do século XXI, a procura interna nunca chegou verdadeiramente a arrancar. O investimento realizado foi essencialmente privado, uma vez que a despesa do Estado federal esteve sempre condicionada pela preocupação de garantir que a Alemanha dava o exemplo em matéria de probidade das finanças públicas numa Europa pós-crise, onde imperava o discurso anti-austeridade e abundavam as tentações de desgoverno orçamental.
O consumo privado nunca foi exuberante, essencialmente porque a queda das taxas de juro para patamares que eventualmente se tornaram negativos levaram as famílias alemãs a poupar ainda mais para compensar a perda de remuneração do seu aforro.
Acontece que a tibieza da procura interna colocou a economia alemã à mercê da evolução da economia global, em particular da China. Quando a procura interna chinesa começou a abrandar de forma mais pronunciada em 2018, o setor industrial global começou a enfraquecer, dinâmica que foi exacerbada pela retração dos volumes de comércio internacional, num contexto de aumento da incerteza criada pela guerra comercial entre os EUA e a China. Como seria de esperar, este quadro revelou-se particularmente prejudicial para a Alemanha que, entre as principais economias mundiais (incluindo a China), é aquela cujo peso efetivo das exportações no PIB é maior. E, como um mal nunca vem só, um dos subsetores industrial mais afetados foi o automóvel, que é dos mais importantes para o tecido produtivo germânico.
É claro que o choque de origem externa poderia ter sido mitigado por um maior ativismo da política orçamental da Alemanha, que é dos países com as finanças públicas mais folgadas. Contudo, o conservadorismo orçamental impregnado na consciência coletiva do povo alemão tem impedido que o governo da Grande Coligação (CDU-CSU/SPD) tenha condições políticas para encetar um programa significativo de estímulo, até porque a CDU aposta na redução da carga fiscal para revitalizar a economia, enquanto o SPD prefere mais despesa para financiar infraestruturas e políticas de redistribuição.
Em suma, a virulência da degradação da envolvente externa levou à estagnação da Alemanha. Mas certamente que um dia as condições económicas melhorarão, pelo que a Alemanha reassumirá o seu protagonismo na cena económica global. Certo?
Pesadelo estrutural
O setor automóvel é, com toda a justiça, um motivo de orgulho nacional e um fator de projeção internacional da Alemanha. Mas o horizonte começa a ficar carregado com nuvens negras. As ameaças são bem conhecidas: o motor elétrico, a condução autónoma e a mobilidade.
A excelência alcançada pela indústria automóvel alemã na produção de motores de combustão interna não tem qualquer paralelo no segmento elétrico, no qual dominam a Tesla e chinesa BYD. A este propósito não deixa de ser irónico que tenha sido a BMW o primeiro construtor a lançar um modelo de produção em massa – o i3 – do qual acabou por inexplicavelmente desinvestir.
A eventual transição para o elétrico tem consequências potencialmente devastadoras para a indústria alemã, grande parte da qual gravita, direta ou indiretamente, em torno da produção do motor de combustão interna, o qual é composto por cerca de catorze mil componentes, que contrasta com cerca de três centenas para o elétrico. Acresce que a tecnologia decisiva dos carros elétricos não está no motor, mas na bateria, que é uma área onde não se reconhece qualquer liderança alemã.
Por outro lado, a maior simplicidade mecânica dos veículos elétricos também implica que a manutenção é muito mais simples e, em grande parte, efetuada por software acedido remotamente. Daí que toda a atividade de produção de peças de substituição, em que a Alemanha é muito forte, tenderá a emagrecer radicalmente.
Os dramáticos avanços no domínio da inteligência artificial dos últimos anos transformaram a condução autónoma numa quase-realidade. Estes desenvolvimentos certamente imporão alterações profundas na relação das pessoas com os carros, ainda que seja impossível precisar quais, pois as transformações em curso nas áreas do urbanismo e da mobilidade serão também decisivas nesta matéria. Aquilo que se sabe é que a indústria alemã partiu atrasada para esta corrida e que, até à data, não conseguiu recuperar a distância, pelo contrário. Estará tudo irremediavelmente perdido?
Descontar o génio da engenharia automóvel alemã é algo que não me atrevo a fazer, apesar de todos os riscos que a atual rutura de paradigma tecnológico encerra. Mas mesmo admitindo que a reabilitação do carro alemão seja bem-sucedida não deixará de implicar custos de transição importantes sob a forma de baixos ritmos de crescimento económico.
O que será da Europa se a Alemanha passar de força motriz a elo mais fraco?
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