A mercearia orçamental de Centeno
O modelo subjacente ao Orçamento de 2020 é o mesmo de anos anteriores. É um modelo de estatização, por um lado, e de faz-de-conta, por outro.
Há dias em que o melhor é não sair de casa. Foi o que aconteceu ao ministro Mário Centeno quando, horas depois de ter afirmado que “tenho algumas dúvidas que alguém não se reveja num orçamento como este”, começaram a ser ouvidas as muitas vozes de rejeição ao documento. Associações patronais, associações sectoriais e sindicatos, todos criticaram a proposta do Orçamento do Estado para 2020 (OE 2020). Contas feitas, ao contrário do que afirmou o ministro, o difícil foi encontrar alguém que se revisse no documento.
Pior ainda, o próprio documento rejeitou-se a si mesmo, ao ter sido apresentado com valores errados, motivando a sua republicação a meio do dia, o que constituiu um percalço pouco digno de uma apresentação do Orçamento do Estado. Por fim, se tudo isto não bastasse, o próprio ministro entrou também em contradição, afirmando por um lado que “quem paga o excedente orçamental são os contribuintes” para logo de seguida afirmar que a carga fiscal “não aumenta no próximo ano” (sendo que, conforme a metodologia comummente aceite em Portugal e no estrangeiro, a carga fiscal vai mesmo aumentar para novo recorde em 2020).
O ministro das Finanças está notoriamente sob pressão. A forma como atacou os jornalistas pela difusão de um alegado mito, isto é, a perda de influência do ministro das Finanças junto do primeiro-ministro, “com base em fontes não identificadas”, disse tudo acerca do assunto. Centeno nunca se dá bem quando tenta vestir o fato do político e pior fica quando fala com soberba, como infelizmente tantas vezes tem sucedido nos últimos anos.
A este respeito, a sua explicação sobre a definição alternativa de carga fiscal daria para uma boa discussão académica, mas, a exemplo do que sucedeu no passado com a definição do saldo estrutural, a realidade das práticas orçamentais no quadro da zona euro impõe metodologias que estão estabilizadas. Não há por que inventar a roda e o presidente do Eurogrupo deveria saber isso mesmo. Assim, a carga fiscal, comummente definida como a soma das receitas fiscais e das contribuições sociais efectivas em percentagem do PIB, aumentará de 34,9% do PIB em 2019 para 35,1% do PIB em 2020. São as estimativas do Governo que o ditam.
A carga fiscal tem sido a principal alavanca de consolidação orçamental nos últimos anos. Em 2019, segundo a estimativa do Governo, a carga fiscal terá ficado cerca de mil milhões de euros acima do previsto há um ano aquando da proposta do Orçamento do Estado para 2019. A cobrança da carga fiscal, acima do esperado, juntamente com uma execução muito aquém do previsto do investimento público (cerca de 700 milhões de euros a menos), permitiu o crescimento da despesa corrente primária (isto é, da despesa corrente excluindo os juros) em cerca de 700 milhões de euros (ou seja, o simétrico do investimento público que não foi executado), permitindo ainda um défice orçamental inferior ao previsto.
As contas parecem complicadas, mas na realidade são simples. A carga fiscal tem crescido acima do crescimento nominal do PIB, traduzindo-se numa elevada elasticidade fiscal do produto. E, ao invés, a despesa tem crescido abaixo do crescimento nominal do PIB, beneficiando de juros mais baixos, de cativações orçamentais e, sobretudo, de investimento público cronicamente aquém do previsto.
Em 2020, o padrão não deverá ser diferente. Porém, no próximo ano, o “inner circle” de Centeno irá defrontar-se com riscos adicionais de execução. Que riscos são esses?
- Primeiro, a eliminação da subestimação do PIB e do contributo que essa subestimação terá gerado na elevada elasticidade fiscal do produto. Recorde-se que o INE, mesmo antes das últimas legislativas, reviu em alta o PIB, pelo que agora o crescimento da carga fiscal poderá normalizar-se face ao ritmo de crescimento da economia.
- Segundo, a estimativa de crescimento da economia que, tendo sido ligeiramente revista em baixa para 1,9%, continua alta face às demais estimativas publicadas pelo Conselho de Finanças Públicas. A confirmar-se um menor crescimento, isso colocaria pressão adicional sobre a evolução das receitas fiscais.
- Terceiro, o relaxamento da lei dos compromissos, para já confinado à Saúde, mas que constitui um péssimo sinal para o futuro, e que suscitará pressões despesistas noutros domínios da despesa pública numa altura em que o ministro está politicamente em baixo.
Estará então em risco o excedente orçamental de 0,2% do PIB previsto para 2020? A resposta a esta questão, para além dos riscos já citados, dependerá essencialmente da execução do investimento público. Se a gestão orçamental for a mesma de anos anteriores, a equipa das Finanças executará o investimento público abaixo do esperado e alcançará o saldo previsto. Caso contrário, se a pressão política (e talvez macroeconómica, no caso de uma desaceleração económica superior à prevista) for muito elevada, isto é, no sentido de executar em pleno o investimento público, então, continuaremos com défice orçamental. E ficaremos também com uma despesa corrente primária mais elevada, porque em 2020 é a despesa corrente primária que mais irá aumentar em termos absolutos.
De facto, se contarmos a despesa com descongelamento e revisão de carreiras na função pública, bem como as suas actualizações salariais em 2020, contabilizaremos ali 80% do acréscimo de despesa com carácter permanente previsto no OE 2020. De qualquer forma, a diferença entre receitas e despesas correntes, mais de seis mil milhões de euros (cerca de 7% das receitas correntes), será suficientemente elevada para evitar riscos maiores de derrapagem orçamental.
Que marca distintiva terá então o OE 2020? Provavelmente, nenhuma. A carga fiscal e a despesa pública aumentarão, sendo que no caso da despesa pública a taxa de crescimento em 2020 será até superior ao crescimento nominal do PIB (levando ao crescimento da despesa pública em percentagem do PIB). Quanto às medidas anunciadas a conta gotas no decorrer dos últimos dias, a fim de maximizar o alarido mediático e a sensação de grandes alterações, nenhuma dessas medidas terá impacto orçamental significativo.
Pelo contrário, as questões que poderão ter impacto material no saldo orçamental continuam em aberto. Trata-se da questão do IVA sobre a electricidade para a taxa mínima de 6% e a recapitalização do Fundo de Resolução para acudir às garantias contingentes do Novo Banco. No caso da primeira, se os partidos da oposição fossem coerentes com o que andaram a defender nas últimas semanas, teriam de forçar o Governo a reduzir a carga fiscal em 800 milhões de euros. Mas isso levaria provavelmente à demissão do Governo. No caso da segunda, como é sabido, há pressões no sentido de o Estado recapitalizar o Novo Banco num montante superior aos 600 milhões de euros previstos no OE 2020.
O modelo subjacente ao OE 2020 é o mesmo de anos anteriores. É um modelo de estatização, por um lado, e de faz-de-conta, por outro. O exemplo da Saúde é paradigmático. Aumentam-se os recursos, que são necessários, mas privilegia-se a gestão pública dos hospitais que tem sido um fracasso. Sobre isto, a taxa de absentismo de 10,4% nas entidades do Ministério da Saúde em 2018 diz tudo.
Ao mesmo tempo, também o exemplo das políticas de parentalidade é revelador da salgalhada de medidas propostas pelo Governo. O aumento das deduções fixas das famílias com mais de dois filhos é ridiculamente baixo e, mais ainda, é também ridiculamente limitado a crianças até aos três anos de idade.
Já o complemento creche, uma espécie de cheque-ensino para crianças em idade infantil, é uma ideia muito meritória, mas, ao que parece, limitada apenas à rede de creches do próprio Estado e do terceiro sector (restringindo a liberdade de escolha dos pais que prefeririam escolher uma creche do sector privado).
Por fim, reforçando a ausência de estratégia nesta matéria, é proposta a descida do IVA sobre a electricidade em função do nível de consumo, sendo que o consumo de electricidade das famílias numerosas é mais elevado que o das menos numerosas. Enfim, como disse, não há neste OE 2020 um traço distintivo.
É tudo mercearia orçamental e navegação à vista.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico
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