Pneumonia em Mandarim

Na impenetrável e perfeita ideologia que suporta a ascensão da China, a entidade vírus simplesmente não existe, não integra a equação do desenvolvimento, nem figura no arsenal político.

Afinal o futuro do capitalismo chinês pode estar dependente de uma visão focada no écran de um microscópio. Em vez de mísseis, são exércitos de médicos, investigadores, biólogos, que detêm a chave para a solução. Em vez de forças imperialistas externas, são os mecanismos da natureza levada aos limites que constituem a nova ameaça. O capitalismo vermelho é vulnerável aos vírus.

A operação em Wuhan tem a assinatura de uma ficção catástrofe. O isolamento de 36 milhões de habitantes e a quarentena de 14 cidades é um enredo da resistência contra a reacção da natureza, contra a invasão de uma entidade estranha que entra sem aviso na corrente de transmissão humana. O mundo artificial do capitalismo chinês julga-se imune aos recursos infinitos que circulam na complexa biologia do planeta. Para a ideologia de Pequim, a China é parte de um Estado fora da natureza, a China é a condensação política e económica de uma realidade que define as suas próprias regras, a China é a entidade superlativa que encarna o espírito do futuro. A China oprime a memória da infecção na parede de vidro que delimita o laboratório, oprime os sentidos na tentativa de esmagar a doença do mesmo modo que esmaga os dissidentes. O vírus que circula pela China é uma metáfora do vírus que circula por Hong Kong, ambos representam uma ameaça existencial à economia e à organização política do Império.

Nas ruas desertas das cidades só se escuta o silêncio do caos que por ali passa, carros da polícia em marcha de urgência, figuras disformes com pistolas térmicas em fatos brancos e máscaras espaciais, enquanto o ar húmido e frio transporta uma corrente infinita de pequenas partículas mortais. O vírus não reconhece a autoridade na figura de Mao Tsé-Tung, pois circula célere entre hospedeiros para garantir a sobrevivência e a reprodução, exactamente como qualquer cidadão chinês. O vírus vermelho da pneumonia não é vulnerável ao capitalismo chinês.

Existe uma certa ironia na actual pandemia que cresce para o Mundo a partir da China. A indústria de software chinesa tem a reputação internacional de provocar pandemias informáticas por todas as nações que possam ser úteis aos seus interesses políticos e económicos. Os vírus informáticos e todo um arsenal de malware é capaz de recolher informação industrial sensível, controlar o movimento dos dissidentes reais ou imaginários, perturbar o normal funcionamento das redes essenciais a uma sociedade comercial organizada. Na versão chinesa pós-moderna, os vírus circulam globalmente numa rede de auto-estradas digitais, deslizam furtivos pelos canais de fibra óptica que ligam o Mundo numa versão do alfabeto Romano.

Com a ambição no Mundo, a China vê-se surpreendida na frente interna por uma ameaça tão antiga como a Humanidade. Embora pretenda projectar a imagem de um Império supremo e poderoso, a sociedade chinesa alberga uma cultura milenar que não chegou ainda ao futuro que o Regime anuncia, cumprindo preceitos pouco seguros em perfeita harmonia com uma natureza opulenta na variedade de iguarias exóticas que ingerem com um prazer jovial. Comer cobra pode ser um acto civilizado na cultura chinesa, com ou sem vírus, mas é um acto que coloca em risco o maior activo do Estado e que é constituído pela mão-de-obra essencial à edificação do grande sonho da China. Os custos económicos do sequestro de 36 milhões de chineses só pode ser a imagem de uma sociedade em completa desregulação relativamente ao sistema natural e à infra-estrutura política. Na China, o movimento do pêndulo entre a natureza e a política está historicamente cativo dos imperativos da economia e das razões do poder, seja pela concentração da população, seja pela centralização da política, seja pela obsessão meteórica com os recursos naturais. Sem limites ou moderação, a China é o exemplo de uma economia de escala que explora à exaustão as fundações naturais que regem os recursos do planeta.

Na impenetrável e perfeita ideologia que suporta a ascensão da China, a entidade vírus simplesmente não existe, não integra a equação do desenvolvimento, nem figura no arsenal político. Portanto, sempre que a biologia surpreende a ideologia a reacção toma a face de uma narrativa do colapso, com medidas de emergência e estado de excepção. Normalmente esta actuação política vem com a cobertura do argumento de uma ingerência externa ou com a matriz perfil de uma conspiração. Neste caso o governo chinês não recorreu a estes fragmentos luminosos que desafiam qualquer inteligência justa. Apesar da contenção, a China tem uma responsabilidade para com a comunidade internacional que não pode ser ignorada. Tal como qualquer produto made in China, os vírus viajam de avião e podem aparecer subitamente em qualquer lugar do planeta, uma poderosa analogia com a ficção de um Apocalipse Zombie.

Uma referência final à Gripe Espanhola. A pandemia de 1918 matou entre 50 e 100 milhões de pessoas, um número astronómico face aos 18 milhões de mortos da I Guerra Mundial. Talvez por esta razão só exista um monumento em França às vítimas da pandemia. De acordo com o World Bank, uma pandemia similar nos dias de hoje poderia provocar 33 milhões de mortos no espaço de 6 meses, bem como uma profunda recessão económica. Que a consciência política saiba articular a linha melodiosa da existência cívica e criativa do homem.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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