A quem responde a gestão pública?

A responsabilização individual não se resume ao crime de peculato. Tem também a ver com a qualidade da administração pública e esta, em Portugal, é praticamente inimputável.

Sempre que o Estado português é condenado judicialmente em algum tribunal, situação que acontece com frequência, há uma questão que fica sistematicamente por responder: E quem se responsabiliza pelos erros e omissões dos administradores públicos?

A questão é cada vez mais pertinente na medida em que, nos últimos meses, têm-se acumulado as condenações judiciais do Estado português junto dos mais diversos tribunais de justiça, umas vezes junto de instâncias jurídicas nacionais, outras vezes junto de entidades externas. As condenações são múltiplas e as razões que lhes dão origem também. Apesar de alguns lamentos, mais ou menos sentidos, pouco parece mudar e a situação vai persistindo, em especial prejuízo dos contribuintes.

A delinquência jurídica do Estado português é de perder de vista. Desde a condenação do Estado português por incumprimento contratual, que ocorre até nos seus próprios tribunais administrativos, à condenação do poder executivo e entidades tuteladas no âmbito da contratação pública pelo Tribunal de Contas, à condenação da Autoridade Tributária em disputas fiscais nos tribunais arbitrais e no Tribunal de Justiça da União Europeia, ou ainda às sucessivas condenações no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos por má administração da justiça em Portugal, há de tudo um pouco. E, no entanto, a responsabilidade individual pelas decisões tomadas pelos administradores públicos, na sombra do Estado, é também quase sempre perdida de vista.

A responsabilidade individual na gestão pública é habitualmente associada à criminalização que decorre da apropriação de dinheiros públicos. Mas a responsabilização individual não se resume ao crime de peculato. Tem também a ver com a qualidade da administração pública e esta, em Portugal, é praticamente inimputável.

A título de exemplo, o OE 2020 contempla dois casos, duas despesas inscritas no documento e que serão pagas pelos contribuintes, que mereceriam maior escrutínio. No primeiro caso, trata-se da despesa relacionada com uma decisão judicial desfavorável à Câmara Municipal de Lisboa (160 milhões de euros). No segundo, trata-se da indemnização a pagar pela Infraestruturas de Portugal pelo cancelamento da subconcessão rodoviária Algarve Litoral (80 milhões de euros). Ambas serão pagas através desse saco sem fundo que são os impostos, sem que os contribuintes tenham noção de que as estão a pagar.

O rol de casos afins é infindável e a ausência de responsabilização constitui um tremendo ónus para a economia portuguesa. Assim, se aos dois casos anteriores juntássemos ainda um terceiro, que também está no OE2020 e que diz respeito à injecção de 600 milhões de euros a realizar no Fundo de Resolução em 2020 – mais uma tranche do tal “mecanismo de capital contingente” que o Governo PS, em nome dos contribuintes, concedeu ao comprador do Novo Banco para se livrar do problema –, o valor total destes casos daria para suportar a descida do IVA sobre a electricidade para a taxa mínima ou para reduzir significativamente o IRS.

Moral da história: sempre que o leitor ouvir o ministro das Finanças alegar a irresponsabilidade orçamental como razão para não baixar os impostos, questione o ministro sobre a irresponsabilidade gestionária do próprio Estado a começar pelo Governo.

Não é só o dispêndio orçamental que importa. Há situações que, embora nominalmente menos dispendiosas, não deixam também de causar mossa ao País, desde logo à sua reputação. É o que tem sucedido com as reversões das concessões de transportes públicos realizadas desde 2016. A este respeito, no final do ano passado foram conhecidas as primeiras sentenças contra as empresas públicas concedentes, para já no Porto, mas em breve provavelmente também em Lisboa, em consequência do cancelamento unilateral, ordenado pelo Governo, dos contratos de concessão então vigentes. Resultado: o Estado português foi condenado a pagar cerca de cinco milhões de euros aos concessionários estrangeiros, para compensação de danos emergentes e lucros cessantes, e saiu também vexado pelo mau nível de argumentação jurídica levada a tribunal.

A realidade em Portugal mostra que quando o Estado é condenado ao pagamento de uma indemnização, quem de facto acaba condenado é o contribuinte. Há situações em que o contribuinte nem se apercebe de que acabou de pagar pelo desvario do administrador público. Afinal, se a indemnização é de cinco milhões de euros, e há cinco milhões de agregados familiares, a indemnização por agregado será de apenas um euro. O custo será, numa palavra, negligenciável.

Outras situações há em que o contribuinte tenta protestar, mas sem sucesso ou, então, apenas sai vindicado longos anos depois (como no recente caso do IUC) por via de indemnizações que não compensam nem o desgaste de quem protesta nem o valor temporal do dinheiro que é gasto no protesto. A fraca responsabilização do administrador público está, pois, na origem da multiplicação de casos e, pior do que isso, na origem de incentivos gestionários e políticos de efeitos desastrosos.

Em Portugal, sucessivos governos, uns mais do que outros, habituaram-se a resolver problemas de gestão pública utilizando para tal o bolso dos contribuintes, que na óptica do administrador público tende a ser apenas dinheiro do Estado. São os tais incentivos políticos que antes destaquei. Assim, sempre que há um problema, adia-se, bloqueia-se, obstaculiza-se, reverte-se ou faz-se qualquer outra coisa que, na prática, permite ao administrador público – aqui entendido como todo aquele agente político com poder executivo – ganhar tempo, livrar-se do problema e desresponsabilizar-se.

A resolução é, pois, artificial. Ele ou ela não resolvem verdadeiramente o problema, simplesmente livram-se dele ou empurram-no para o próximo. Quem vier a seguir que pague a conta, sendo que aquele que vier a seguir tenderá a fazer o mesmo até a conta chegar ao contribuinte final. É uma espécie de esquema de Ponzi da política.

Como podemos então alterar este estado de coisas? Desde logo, reduzindo a presença do Estado na economia, retirando as entidades públicas do lugar de árbitro-jogador, circunstância na qual o Estado, que se pretende árbitro, dificilmente será isento. Depois, ao reduzir-se o número de entidades públicas com intervenção na economia, levando as que permanecessem activas ao escrutínio do Parlamento para que nele fossem apreciados de forma individualizada os orçamentos e relatórios de fiscalização.

Por fim, estabelecendo no Orçamento do Estado uma rubrica autónoma, referente aos custos de casos como aqueles que são citados neste artigo, e criando um imposto específico para os pagar, de preferência, um imposto cuja nota de pagamento fosse enviada mensalmente aos contribuintes com a discriminação da factura. Talvez assim as coisas mudassem.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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