O lado animal da sociedade

O exemplo que vemos em Portugal no desporto, e não é só no futebol, traz-nos à memória o circo romano.

Há umas semanas, aproveitando um domingo solarengo, levei os meus rapazes a ver um jogo de futebol da terceira divisão. Como já os tinha levado a ver jogos da primeira divisão, achei que uma experiência de futebol semiprofissional seria igualmente interessante. Mas em menos de dez minutos arrependi-me da decisão, tal era o baixo nível da linguagem que se ouvia naquele recinto de jogo. Acabei por ficar, mas apenas por insistência dos miúdos, entusiasmados com o jogo e, sobretudo, curiosos pela sucessão de atoardas e impropérios que iam ouvindo. Um choque com a realidade também não lhes faria mal – admiti então. Ao regressarmos a casa, entre avisos de que aquela linguagem não seria admissível em casa, não parava de pensar no seguinte: o que leva as pessoas a este nível de boçalidade?

A falta de civismo nos estádios portugueses é a norma, seja em jogos da terceira, segunda ou primeira divisão. A cultura do insulto está de tal forma enraizada e normalizada que, como se lia num recente acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, os palavrões proferidos “[numa] envolvência futebolística não têm outro significado que não seja a mera verbalização das palavras obscenas”.

Por outras palavras, a envolvência conduz as pessoas à irracionalidade, sendo que a verbalização do insulto assume carácter extasiante. Insultar o árbitro, os fiscais de linha, os apanha-bolas, os treinadores (no plural!), os jogadores adversários e, hoje, também o VAR, é, em suma, um escape. Enfim, não obstante os estados de alma que a alta competição desencadeia nos adeptos, a boçalidade também diz muito sobre a sociedade que temos.

Não é minha intenção dar lições de moral a ninguém. Quem nunca pecou que atire a primeira pedra. Mas a dicotomia entre a irracionalidade, observada no estádio, e a superioridade ético-moral, que gostaríamos de observar à sociedade, remete-nos para os conceitos de liberdade negativa e positiva de Isaiah Berlin (“Dois conceitos de liberdade”).

A liberdade negativa está representada na não-interferência sobre a acção individual, que no limite tudo permite ao indivíduo. Já a liberdade positiva assenta na ideia de que o indivíduo é livre de poder participar numa sociedade ideal, presumindo algum autocontrolo do próprio no sentido desse ideal definido no contexto da sua envolvência. Na primeira, o indivíduo torna-se refém, bem ou mal, dos seus caprichos. Na segunda, ele guia-se pelo pensamento racional e pela ética instituída.

Como conciliar os dois conceitos de liberdade? Há essencialmente duas abordagens.

  • A primeira abordagem dá prioridade à liberdade de expressão, enquanto valor maior, mesmo quando se está perante um discurso de ódio. É a tradição que vigora desde sempre nos Estados Unidos, consagrada na primeira emenda constitucional.
  • A segunda abordagem distingue entre a liberdade de expressão e o discurso de ódio. O direito à liberdade de expressão, como bem maior, impõe-se, entre outros, sobre o direito ao bom nome, mas não cauciona o discurso de ódio que leva à violência física. Trata-se, no caso desta última, da abordagem que encontramos na Europa e que sanciona o discurso discriminatório contra grupos de pessoas com base na orientação sexual, raça ou religião.

Entre as duas liberdades, qual é a melhor abordagem? A tradição liberal recomenda o afastamento da tentação estatizante e totalitária. Ou seja, a liberdade positiva de Berlin funciona muito bem à escala individual, mas, paradoxalmente, a sua prossecução ao nível da colectividade enferma de riscos enormes, desde logo contrários à liberdade individual. A liberdade positiva imposta pelo Estado, um contrassenso, resulta na coerção e na utopia socializante. O ideal é, pois, que a sociedade, enquanto agregação de diferentes indivíduos, exerça o seu repúdio face a determinados comportamentos, sem recurso à imposição estatal. Nesta via, conciliam-se espontaneamente os princípios da liberdade positiva e negativa.

Todavia, o que fazer quando há um conflito insanável entre as duas liberdades? Aqui, a lei serve para modificar a liberdade negativa, aumentando ou restringindo a não-interferência sobre a acção humana. No caso dos insultos raciais em recintos desportivos, trata-se de utilizar a tecnologia para identificar os delinquentes e interditar a sua presença nos estádios, como se faz em Inglaterra. Mas quanto à liberdade positiva, na minha opinião, e sempre que possível, ela é melhor endereçada através de mecanismos participativos que permitam aferir o tipo de sociedade e os princípios constitucionais que recolhem a preferência dos cidadãos. Ora, em Portugal, os princípios do direito estão cada vez mais alinhados com a jurisprudência europeia, designadamente, em matéria de liberdade de expressão e criminalização do discurso de ódio. Assim, não sendo possível nesta fase o mecanismo participativo, não deixamos de estar alinhados com os princípios de segurança, liberdade e justiça que configuram a União Europeia.

Problemas complexos não têm soluções simples. No caso da linguagem insultuosa nos estádios de futebol, que à partida parece um problema bastante simples de brejeirice, temos na raiz um problema bastante complexo de falta de educação em sentido muito lato. Ou seja, como todos se comportam de forma insultuosa, a começar nos participantes directos e indirectos do próprio jogo – incluindo jogadores, treinadores, delegados, dirigentes, claques e, às vezes, até os árbitros – o anormal é não agir de forma insultuosa.

A turba gera um complexo comportamental que se autoalimenta, um caldo cultural de “porcos, feios e maus”, que mina qualquer apologia de “fair-play”, sobretudo, junto dos mais novos. A solução é ver o jogo em casa e repudiar todas as manifestações de gangsterismo clubístico que, ainda assim, vamos vendo e ouvindo. E esperar pela tal geração mais bem preparada de sempre.

Há inquietações que só sentimos quando somos colocados perante as mesmas. O exemplo que vemos em Portugal no desporto, e não é só no futebol, traz-nos à memória o circo romano. As arenas, gladiadores e feras, dispostas para gáudio do povo. Desde então passaram mais de dois mil anos, mas os mesmos instintos permanecem.

A este respeito, a minha experiência com as crianças tem-me feito recuar trinta e tal anos quando, também eu criança, ia ao estádio e o meu pai me alertava para o “dicionário” debitado pela multidão. Infelizmente, aos meus olhos, eu que fui um razoável jogador e que, para além de hábitos de estudo, tento incutir nos meus filhos hábitos de desporto e competição, pouco mudou. É pena, pois era de esperar melhor num país que, apesar de tudo, avançou no tempo. Oxalá não tenhamos de esperar outros trinta e tal anos.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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