Instituições, regras e discricionariedade
Este Governo, desde novembro de 2015, mostra um total menosprezo pela independência e qualidade das instituições que servem de contrapeso ao poder executivo.
A literatura económica é relativamente consensual ao identificar a qualidade das instituições e das regras como um dos fatores mais relevantes no desenvolvimento económico, social e político de uma nação, bem como na redução da corrupção e da ineficiência dos governos.
No seu livro “A Riqueza e a Pobreza das Nações”, David Landes explica por que razão algumas nações tem mais sucesso económico (são mais desenvolvidas), que outras? Algumas circunstâncias históricas são importantes, mas os fatores culturais são críticos. O autor destaca naturalmente a qualidade das instituições democráticas e sistema de “pesos e contrapesos”.
Tocqueville dizia que para que a liberdade aumente sem comprometer a igualdade, é preciso impedir que o poder se concentre nas mãos de poucos. Para tal, as sociedades criam regras objetivas e genéricas que se aplicam a todos os cidadãos. É esse o papel das instituições e das regras.
As instituições são assim, na definição do Nobel da Economia Douglass North, as “rules of the game”, quer na forma de regras escritas, quer nas normas sociais informais, que limitam e conduzem o comportamento individual e estruturam as interações sociais (aquilo a que chamamos as “institutional frameworks”, descritas por outro Nobel da Economia, Williamson).
Os economistas têm tido um longo debate no que diz respeito a “regras” e “discrição”. De um lado, economistas mais de vertente neoclássica que defendem a existência de regras (e naturalmente de instituições que suportam essas regras) como condição fundamental para o bom funcionamento de um país e de uma economia. Do outro lado, os intervencionistas e neo-keynesianos, que defendem a discricionariedade dos atores políticos na condução das políticas.
Um exemplo é a zona Euro e a política monetária (onde o princípio fundador é o triunfo das “rules”). A política monetária é desde 1998 competência exclusiva do Banco Central Europeu. O Tratado de Funcionamento da União Europeia estabelece que a política monetária é para os países da zona euro uma competência exclusiva da União, atribuindo essa competência ao Banco Central Europeu. Assim, cada Estado membro abdica da sua própria política monetária e da possibilidade de uma estabilização monetária (bem como do financiamento dos défices via emissão de moeda). Recorde-se que o mandato do BCE se restringe, exclusivamente, ao controlo da inflação (naquilo que é designado por “Regra de Taylor” [1]), através da estabilidade dos preços, atuando em total independência. Este papel predominante dos Bancos Centrais resulta de alterações económicas e políticas, e de uma vitória do princípio de Lucas-Sargent [2].
Ora, Portugal sempre padeceu de um problema de falta de qualidade e independência das suas instituições. Contudo, desde os últimos 10-15 anos algum esforço tem sido feito para melhorar as nossas instituições e o nosso ambiente legal, político e regulatório.
São exemplos disso a UTAO desde 2007 e o Conselho de Finanças Públicas (CFP) desde 2012. A UTAO tem-se afirmado como uma entidade independente e credível que acompanha e monitoriza a política orçamental dos governos. O mesmo para o CFP. O CFP, que hoje desempenha também uma função de supervisão orçamental prevista no “two-pack”, tem-se também afirmado pela qualidade das suas análises e trabalho.
Também o Tribunal de Contas tem melhorado a qualidade da sua auditoria e os seus relatórios. Por outro lado, os reguladores são hoje, em regra, mais independentes e mais dotados de meios técnicos e humanos.
Contudo, este Governo, desde novembro de 2015, que mostra um total menosprezo pela independência e qualidade das instituições que servem de contrapeso ao poder executivo.
O ministro das Finanças tem atacado constantemente todas as entidades nacionais e internacionais que lançam avisos sobre o seu “sucesso orçamental”. Não há entidade independente do Governo (seja nacional ou internacional) que, em matéria de política orçamental, não faça, para o período de 2016 a 2019, uma crítica a Portugal (algo que eu também tenho procurado aqui e noutros fóruns demonstrar e alertar), que a consolidação orçamental dos últimos 4 anos é sobretudo conjuntural, apoiada em fatores cíclicos e pontuais.
O ministro das Finanças, ao invés de defender as instituições, tem as atacado de forma frequente e acintosa. Seja quem for que critique o Doutor Centeno (UTAO, CFP, FMI, Comissão Europeia ou analistas e partidos da oposição) é alvo da sua ira e desdém. Só o Doutor Centeno é que percebe de economia e de finanças públicas. Relativamente à UTAO, na discussão do OE2019, chegou ao ponto de dizer que os “expertos” da UTAO são tão sabedores de contabilidade pública e de contabilidade nacional e que não sabiam a questão que estava a ser criticada no relatório da UTAO (a questão da diferença entre o saldo em contabilidade pública e contabilidade nacional). E depois terminou de forma pior: “mas no local próprio trataremos desse assunto”. Já sobre o CFP, o Ministro e o governo também por várias vezes atacaram a sua independência e o seu trabalho.
Recordemos que o ministro das Finanças que quer ser governador do Banco de Portugal é o mesmo que avançou com uma proposta de regulação do Banco Central que entre outras coisas lhe retirava independência e autonomia.
Já o Tribunal de Contas foi visado nos últimos tempos, sobretudo pelo Presidente da Câmara de Lisboa e pelo Ministro do Ensino Superior. No caso da auditoria à venda de imóveis da Segurança Social à autarquia de Lisboa, o Tribunal de Contas limitou-se a constatar os factos: que a venda desses imóveis tinha gerado um prejuízo ao Fundo da Segurança Social, dado que alguns imóveis foram vendidos abaixo do preço de mercado. Ora, se é competência da autarquia a política da habitação, essa não é seguramente uma responsabilidade da Segurança Social.
O Dr. Medina deveria perceber que políticas sociais se fazem com o dinheiro dos impostos, não das contribuições sociais. Estas servem para assegurar as atuais e as futuras pensões. Não deixa de ser caricato o Doutor Centeno querer retirar as contribuições para a Segurança Social do cálculo da carga fiscal, argumentando que não pagam serviços, mas sim pensões, e depois o Dr. Medina achar que é normal usar esse dinheiro para subsidiar casas em Lisboa. Além da questão de equidade. O dinheiro das pensões serve para subsidiar políticas em Lisboa, porque é que não serve para subsidiar políticas em Freixo-de-Espada à Cinta, em Cinfães, Sátão ou Gavião ou Fronteira? O que é que Lisboa tem que não tem Sernancelhe? Ou Arronches? Ou Penela? Ou….
Já no caso do Ensino Superior, o Tribunal de Contas voltou a constatar uma evidencia: o financiamento das Universidades não segue o que está estabelecido na Lei. Algo que os Reitores têm dito frequentemente. Mas o ministro do Ensino Superior entendeu que atacar o Tribunal de Contas era mais fácil que reconhecer o facto. O ministro, que é um académico, deveria perceber que as instituições serem fortes e credíveis é mais importante que uma pessoa, o seu mandato ou a sua governação. Atacar o Tribunal de Contas da forma como foi feito não contribuiu para aquilo que é o mais importante num país para ser desenvolvido e ter baixos níveis de ineficiência e corrupção, que é a qualidade institucional.
Também vimos o mesmo na questão da lei das PPP, que foi alterada para permitir alguns projetos em Lisboa e reduzir a transparência e Accountability das PPP. Escrevi sobre isso aqui. Mais uma vez, na questão “rules versus discretion”, a segunda voltou a vencer. E em Portugal isso significa, por regra, custos futuros para os contribuintes.
Mas a semana passada tivemos mais um exemplo como para este Governo as instituições e as regras valem pouco. Há uma Lei que determina que os municípios têm de aprovar as infraestruturas com impacto na sua área geográfica. Ora, não se está aqui a reabrir a discussão da localização do novo aeroporto de Lisboa (e estou à vontade por tenho defendido que a solução Montijo é a menos má das diferentes alternativas possíveis).
O que se discute é algo mais importante que qualquer infraestrutura. É se o poder discricionário deve permitir alterar leis só porque o Governo foi incompetente na gestão do processo. Recorde-se que o anterior ministro Pedro Marques iniciou o processo em 2016 (ou seja, levou 4 anos para perceberem que poderiam ter um problema). Além disso, caso o aeroporto tivesse sido incluído no PNI 2030 (Programa nacional de investimentos 2020-2030), tendo este sido aprovado por 2/3 no Parlamento, esta questão já não se colocaria.
Ou seja, a questão essencial que aqui se coloca não é a localização do aeroporto (tema que o governo fechou, embora sem nunca ter analisado alternativas). É apenas que um governo não deve ter um poder absoluto, que lhe permita mudar leis e regras a seu bel-prazer.
[1] Taylor, John B. (1993), “Discretion versus Policy Rules in Practice”, Carnegie-Rochester Conference Series on Public Policy, 39, 195-214
[2] Lucas, R. E., & Sargent, T. (1981). After Keynesian macroeconomics. Rational expectations and econometric practice, 1, 295-319; Lucas Jr, R. E. (1980). Rules, discretion, and the role of the economic advisor. In Rational expectations and economic policy (pp. 199-210). University of Chicago Press; Lucas, R. E. (1986). “Principles of fiscal and monetary policy”. Journal of Monetary Economics, 17(1), 117-134
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