Popeye, o Covid-19 e o Governo
A crise do coronavírus vai obrigar a repensar tudo. Até o modelo de economia favorecido por este Governo - o turismo como desígnio nacional.
O Governo está cansado. Convocado para uma maratona de quatro anos, rasteja ao fim de 100 metros de corrida. Parece estar a fazer trabalhos forçados. Ou, melhor, trabalhos esforçados. Na sua primeira encarnação como primeiro-ministro, o sr. António Costa assemelhava-se a Popeye. Com os espinafres fornecidos pelo BE e pelo PCP resguardou a sua Olívia Palito, o Governo, das investidas do seu competidor, o sr. Rui Rio. Agora o BE e o PCP sonegaram ao sr. António Costa parte dos espinafres necessários para ser forte e confiante e poder vencer qualquer desafio.
O Governo de acção foi substituído pela da inanição. Um sinal dessa dieta com poucos espinafres é a arrogância com que tem respondido às afrontas da oposição no Parlamento. É o primeiro sinal de falta de músculo e inexistência de argumentos. O sr. Marcelo Rebelo de Sousa, antes de falar ao país a partir da sua varanda, percebeu isso. E disse-o claramente. O sr. Rui Rio não disse nada, mas sabe que começa a valer a pena a espera. Um dia destes o Governo ainda lhe cai no regaço, como um maná do Céu. O BE já percebeu que, com este PS, não tem direito nem a umas migalhas do bolo do poder. O PCP quer voltar a ter poder autárquico. Ou seja, o PS está cercado e parece um rebanho que obedece às ordens de marcha militar da sra. Ana Catarina Mendes.
A crise do Covid-19 vai dizer-nos muito sobre o futuro do Governo e da noção romântica da “aldeia global”. Idiotices como a do sr. Donald Trump, que acha que um “milagre” ou a proibição dos europeus viajarem para os EUA, o salvarão, são areia para os olhos dos distraídos. Estamos a assistir, em directo, ao fim de uma era. Os conceitos vão mudar. Num sistema global os Estados-nação caminhavam para se tornar relíquias.
A “austeridade esclarecida” imposta por Bruxelas, e seguida pelos países mais indefesos, significou cortes brutais nos serviços públicos de saúde. Há menos camas, menos meios e menos profissionais. As debilidades são visíveis. Os Estados vão ter de voltar a ter poder de decisão.
Todo um novo modelo económico poderá estar a nascer. Por isso o Governo do sr. António Costa tem de mostrar que tomou bebidas energéticas para voltar a ter capacidade decisiva neste caos do Covid-19. Tem de ser transparente e claro. E actuar decisivamente, informando e formando. Não pode patinar na maionese dizendo que o Governo segue as instruções do Conselho Nacional de Saúde Pública, como se fosse uma entidade de Marte com que nada tem a ver, quando este é presidido pela ministra da Saúde. Novos tempos requerem outras formas de fazer política.
A música costuma anunciar novas eras. No início da década de 1960, Bob Dylan cantou “The Times they are A-changin”. Em 1979, o grupo punk Raincoats, onde despontava a portuguesa Ana da Silva, no seu primeiro disco, agora reeditado, cantava “The Void”, banda sonora desses tempos de desencanto e vazio. Falta a banda sonora destes dias.
Num tempo em que a ciência ocupou o lugar da Providência para salvar os seres humanos, o Covid-19 vai alterar muitas coisas que considerávamos garantidas. Porque as variáveis – sanitárias e económicas – chocam entre si. Os políticos terão de ter o dom de as equilibrar. Requerem-se estadistas e não simples políticos. O Governo tem agora uma oportunidade de ouro. Ou volta a ser Popeye ou Olívia Palito foge, sem olhar para trás.
A crise do coronavírus vai obrigar a repensar tudo. Até o modelo de economia favorecido por este Governo – o turismo como desígnio nacional. A honestidade e não a arrogância será o melhor espinafre do Governo. Se tiver inteligência para isso. Porque há o perigo de termos “a consistência de alforecas”, como alertava Oliveira Martins em 1891.
O Covid-19 não respeita soberanias nacionais nem fronteiras. Mas vai fomentar o discurso ideológico da desglobalização, do nacionalismo e do medo. Essa é a grande prova do Governo português e da União Europeia nos próximos meses. O risco é enorme. Miguel de Unamuno, num conjunto de textos compilados como “Portugal, Povo de Suicidas” (que a editora Abysmo republicou) escrevia de forma a fazer-nos reflectir: “O povo português tem, como o galego, fama de ser um povo sofrido e resignado, que tudo suporta sem protestar, a não ser passivamente. E, no entanto, há que ter cuidado com os povos como esses. A ira mais terrível é a dos mansos”. É um bom aviso para um Governo que tem feito tantas trapalhadas recentes e que, sendo mestre nisso, parece já não saber ter outra profissão.
Sugestão da semana
Nestes dias incertos nada como fazer uma pausa para ler. Por exemplo, “Andanças com Heródoto” (edição Livros do Brasil) de Ryszard Kapuscinski, reflexões do jornalista sobre as suas viagens pela Índia, China, África e Ásia Menor, em confronto com as “Histórias de Heródoto”, escritas pelo historiador grego há 2500 anos.
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