O equilíbrio entre a saúde pública e a economia
Há que tratar da saúde pública em primeiro lugar, mas, nessa ânsia, ter também cuidado para não se criar um problema ainda maior do lado da economia privada.
O Governo fez bem em ordenar o encerramento das escolas, a exemplo do que tem sucedido por esse mundo fora, desautorizando assim um Conselho de Saúde Pública e uma ministra da Saúde que mostraram estar fora do mundo. Foi talvez a única ocasião em que a liderança do Governo tomou, e bem, a iniciativa (clínica e política) na gestão da presente pandemia. Mas, a cada dia que passa, em Portugal e no estrangeiro, ganha probabilidade o risco de a crise económica vir a sobrepor-se à crise de saúde pública que, por sua vez, continua a agravar-se. Se isso acontecer, quando acontecer, a economia entrará numa contracção económica que apenas acentuará o problema de saúde pública que o mundo enfrenta. É uma autêntica corrida rumo ao fundo. Por agora, a saúde pública afunda à frente da economia, mas, em breve, com a economia a afundar vertiginosamente, a primeira poderá ser ultrapassada pela segunda. Há, assim, um equilíbrio entre ambas que importa não perder de vista.
Nesta altura, qualquer projecção macroeconómica enferma de grande margem de erro. Por exemplo, nos últimos dias, soube-se que a China contraiu 13% no período de Janeiro a Fevereiro deste ano face ao mesmo período homólogo. Mas para o trimestre completo a queda homóloga do produto na China andará entre -6% e -10%. De igual modo, também é esse o intervalo apontado para Itália, sendo que no caso italiano os resultados provavelmente surpreenderão pela negativa.
Em Portugal, em face do atraso temporal que levamos, o impacto será sentido sobretudo no segundo trimestre. Os modelos análogos são quase inexistentes. Mas com base num estudo de um professor da Universidade de Oxford (Simon Wren-Lewis, “The economic effects of a pandemic”) a contracção anual do PIB no contexto de uma pandemia oscilará em média entre -1 e -2%, podendo ser mais intensa (multiplicada por factores de 3 a 6 vezes) em função, entre outros elementos, da duração do encerramento dos estabelecimentos de ensino.
Este é o meu terceiro artigo consecutivo sobre o coronavírus. Nestes artigos, dada a natureza técnica da informação e dos números que tenho partilhado, incluindo taxas potenciais de contágio mundial e taxas de mortalidade associadas ao coronavírus, tenho tido a preocupação de deixar aos leitores as fontes relevantes, para que possam ser lidas pelos mesmos.
Para que cada um possa fazer o seu próprio juízo e relacioná-lo com o que vai observando em Portugal. O escrutínio democrático dos governos e instituições depende da vitalidade da opinião pública. É isso que continuarei a fazer neste texto. Com uma certeza. Pelo menos desde o final de Fevereiro que tem havido reputados epidemiologistas a alertar na imprensa internacional para a possibilidade de um contágio maciço do coronavírus a nível mundial. É, pois, sem surpresa que assistimos ao surto exponencial em Portugal. Na verdade, a única coisa que tem surpreendido é a impreparação das autoridades e a sua falta de nervo na gestão da crise, a começar no Presidente da República que desapareceu ao primeiro som de disparo.
Em artigos anteriores, defendi a massificação dos testes de despiste rápido em Portugal. Seria uma forma de selecionar, de forma abrangente, a população a necessitar de quarentena sem com isso enfiar toda a gente em casa, como em breve poderá acontecer. Seria também uma forma de avaliar com maior rigor a efectiva progressão do vírus.
Na Coreia do Sul, onde os testes foram massificados junto da população em geral, uma amostra recente sugere que a taxa de infecção na faixa etária dos 20-29 anos será de 30% (ver “Unlikely to die of COVID-19 – but likely to pass it on: young people’s vital role in fighting coronavírus”). Por outras palavras, há muitas pessoas que não sofrerão problemas maiores, mas que poderão contribuir para espalhar o vírus.
Já em Itália, onde só têm sido testados os casos evidentes, os dados apontam para que na mesma faixa etária de 20-29 anos a taxa de infecção seja de apenas 4%, provavelmente subestimando a verdadeira dimensão do problema. E em Portugal?
Em Portugal, para além da ausência de dados suficientes, falta um plano de acção para acomodar as evidentes lacunas do SNS. As semanas vão passando e nada acontece, nem sequer uma elementar articulação entre o SNS e os hospitais privados com vista à partilha da capacidade instalada no sector privado.
Ora, numa altura em que novos estudos sugerem a possibilidade de uma maior necessidade de internamento dos doentes com COVID-19 em unidades de cuidados intensivos, face ao que antes se julgava, de 10% para 30% do total de hospitalizados (ver “Impact of non-pharmaceutical interventions (NPIs) to reduce COVID19 mortality and healthcare demand”), Portugal está na cauda da Europa no número de camas de cuidados intensivos. Temos apenas 3,5 camas de cuidados intensivos por cada 100.000 pessoas face à média europeia de 12 (ver “European countries search for ventilators as virus cases surge”). Desgraçadamente, temos também poucos ventiladores (apenas 1.142 no SNS, segundo números citados pelo próprio primeiro-ministro, face aos 25.000 da Alemanha).
O investimento no reforço dos meios na Saúde é prioritário e, se fosse devidamente articulado com os restantes países da União Europeia, seria a forma mais eficaz e eficiente de sair da crise de saúde pública em que toda a Europa se encontra. Do ponto de vista clínico, acomodaria a procura, evitando os dilemas éticos que em Itália têm sido relatados. E, politicamente, criaria a tal alma europeia pela qual muitos anseiam, mas que nos momentos críticos nunca aparece.
Os exemplos das camas de cuidados intensivos e dos ventiladores são ilustrativos da falta de cooperação e planeamento. Por um lado, se há países com diferentes capacidades instaladas, seria muito mais construtiva a partilha de recursos do que o encerrar de fronteiras. Infelizmente, ao pedido de ajuda proveniente de Itália, para disponibilização de meios clínicos, a Europa virou costas. Por outro lado, quanto aos ventiladores, custando cada ventilador cerca de vinte mil euros e assumindo que haveria quem agora conseguisse fazer a entrega, triplicar a capacidade portuguesa, dos tais 1142 ventiladores para 3500, representaria um investimento inferior a 50 milhões de euros (o que no orçamento da Saúde é zero). A falta de planeamento prévio e a miopia orçamental são evidentes. Havia condições para se ter feito bem melhor.
A política orçamental, que hoje é consensual como forma de atenuar o afundanço da economia, corre o risco de ser esbanjada em face da falta de cooperação na Europa. Uma aposta muito forte e cooperante na saúde ao nível europeu, para além de solidária entre os países, seria economicamente preferível às bombas orçamentais que cada país vai preparando individualmente.
Há países como Portugal que, a médio prazo, serão novamente confrontados com o problema do endividamento e, nessa altura, também com inflação. Para já, estes potenciais problemas serão politicamente irrelevantes, mas a seu tempo farão mossa.
Isto dito, é inegável que a política orçamental seria sempre necessária nesta fase. As medidas restritivas da actividade económica, impossibilitando muitos de exercer a sua actividade por motivos alheios de força maior, determinam que parte do custo tivesse de ser suportado pelo erário público. Aqui se inclui a comparticipação generalizada dos salários por parte da Segurança Social em caso de paragem justificada, bem como medidas diversas de alívio à tesouraria das empresas por parte do Estado, ou o reforço estatal das contragarantias do sistema de garantia mútua.
Porém, sob a compreensível e necessária expansão orçamental, há o risco de uma socialização de prejuízos e de uma transferência de propriedade que me parecem perigosas. Em breve, começaremos a assistir às falências em catadupa e aos episódios de incumprimento creditício que reduzirão a eficácia de algumas medidas entretanto anunciadas pelas autoridades. Será o resultado da paralisação da economia, em face dos estados de alerta e de emergência que têm vindo a ser decretados.
Neste sentido, espero que o estado de emergência não venha a ser decretado em Portugal. Se assim acontecer, e porque os quinze dias da Constituição não resolverão o coronavírus, será uma questão de (pouco) tempo até termos problemas de ainda maior dimensão, como o colapso generalizado do tecido empresarial ou as reivindicações incomportáveis quer de patrões quer de sindicatos, aliados à pulsão nacionalizadora de algumas cabeças. Há, pois, que tratar da saúde pública em primeiro lugar, mas, nessa ânsia, ter também cuidado para não se criar um problema ainda maior do lado da economia privada.
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