Salvar a economia é também salvar as pessoas
Não podemos sair desta crise de saúde pública com uma economia destruída.
Neste momento difícil a prioridade tem de ser salvar as pessoas. Proteger os grupos de risco de serem contaminados pelo covid-19. Procurar diminuir ao máximo o número de infetados. Tentar salvar o máximo possível de vidas. Não ter em Portugal a situação dramática que se vive em Itália. Mas salvar a economia é igualmente fundamental. Não podemos sair desta crise de saúde pública com uma economia destruída. Salvar a economia é salvar as empresas, os empregos e consequentemente os rendimentos das famílias.
O mais importante a fazer no campo económico é procurar minimizar o impacto desta crise na capacidade produtiva instalada. Isto é, procurar que o máximo de empresas que fecharam ou venham a fechar temporariamente por causa do covid-19 voltem a abrir quando a quarentena e este período de exceção passar. Temo que muitas empresas fechem agora por um período longo e depois não sejam capazes de reabrir, por diversos incumprimentos, quer no pagamento de parte dos salários, quer no incumprimento das prestações do serviço de dívida que tenham para com as instituições financeiras.
Ora, este problema não se coloca apenas em Portugal, mas em toda a Europa. Daí que a principal linha de resposta tenha de partir de ações conjuntas e coordenadas a nível Europeu.
Repare-se que podemos estar perante dois cenários económicos na Europa: uma quebra significativa do PIB em 2020 com uma recuperação em 2021 e 2022, aquilo que os economistas chamam uma recuperação em V (desce rápido e recupera rápido). Ou podemos entrar numa espiral de crise de saúde pública que leva a uma crise económica que leva a uma crise financeira. Isso implicaria uma evolução em L (quebra rápida e depois não recupera de uma forma tão rápida).
O que tem de ser feito, para já, a nível Europeu e nacional é garantir liquidez às empresas. Garantir que os incumprimentos de prestações bancárias não implicam a entrada em ‘default’. Que esses incumprimentos que ocorram durante o ano de 2020 sejam convertidos em dívida a médio ou longo prazo. Mas isso tem de ser um plano Europeu, que deve passar pela mudança de regras de supervisão bancária.
É fundamental garantir que haverá o mínimo de falências, de redução de capacidade instalada e de despedimentos. Mas para isso é preciso muito dinheiro. Dinheiro para cobrir os custos salariais das empresas que não vão laborar (ou vão laborar muito abaixo da sua capacidade) nos próximos meses. Dinheiro para cobrir os custos fixos (rendas e alugueres, outsourcing que não pode ser dispensado, como a segurança das instalações ou a manutenção de equipamentos e hardware, entre outros). Dinheiro para fazer face ao serviço da dívida.
Mas os apoios têm de ser direcionados. Não vale a pena pensar numa ideia de “helicopter money”, de atirar dinheiro (ou benefícios tipo não pagar a luz ou a água ou a renda do banco) para todos. Se o ISEG continua a dar aulas (mesmo que online) e continua a pagar-me o salário, que sentido faz que eu receba dinheiro ou benefícios por causa desta crise? Se uma empresa privada continua a trabalhar, a ter a sua faturação relativamente inalterada, porque motivo deve ser apoiada nos seus custos? O dinheiro, como qualquer recurso, é escasso (e no caso de Portugal é mesmo muito escasso por causa da dívida pública como veremos já de seguida). Sendo escasso tem de ser usado da forma mais eficiente possível e tem de ser direcionado para quem efetivamente precisa.
Ora, se tivermos três meses de crise, que impacto teria um megaprograma de apoio à economia? Vamos supor que o Estado pagaria 50% dos salários do setor privado. Isso implicaria algo como 4 mil M€ por mês, ou seja, cerca de 2% PIB em cada mês. No final dos 3 meses seriam 6% PIB. Junte-se a quebra do PIB (que pode facilmente chegar aos 5% este ano) e o efeito dessa quebra nas receitas fiscais (o que se chama de estabilizadores automáticos). Facilmente o défice em 2020 seria de 10%. Ora, mesmo que depois em 2021 grande parte deste custo já não existisse (haveria sempre alguma perda de receita fiscal que demorará tempo a recuperar) e o défice ficasse pelos 2% ou 3%, Portugal teria no final do próximo ano uma dívida pública próxima dos 140%.
Tudo isto só pode ser feito com dinheiro Europeu. Desta vez, ao contrário de 2011, não há um problema de “risco moral”. Ou seja, estamos perante uma crise que atinge toda a Europa, de forma relativamente igual (embora Itália e Espanha para já de forma mais dramática, mas todos os países estão a braços com uma pandemia). Nesse sentido, ninguém pode reclamar que o problema é apenas de alguns países. Nem pode valer o argumento da crise anterior, que foi o desleixo financeiro e orçamental de alguns países que os colocaram numa crise das dívidas soberanas.
O problema de países como Portugal ou Itália não é o défice, mas sim a dívida pública. Esta crise mostra bem a razão imperiosa de ter uma divida pública baixa. Se Portugal tivesse uma divida pública de 50% ou 60%, teria agora margem para ter 10% de défice em 2020. Mas não tem essa margem. Os keynesianos gostam muito de falar da importância da atuação pública em períodos recessivos, com políticas anti-cíclicas. Tendem é a esquecer que Keynes era um forte defensor de disciplina orçamental e superavits em períodos de crescimento económico. Exatamente para que exista margem de atuação quando a crise chega.
E desenganem-se os que acham que a flexibilidade dada pela Comissão Europeia na sexta feira passada é um grande passo. Representa muito pouco. Até porque essa flexibilidade sempre esteve lá no Pacto de Estabilidade e Crescimento. A novidade é apenas ter sido acionada. Mas se Portugal entrar numa espiral de descontrolo orçamental, terá como consequência um novo resgate financeiro.
Só com um plano Europeu credível e geral para todos os países é que se pode enfrentar esta crise. Os 10% ou 15% do PIB que esta crise vai custar (ou eventualmente até mais) têm de ser financiados por um mecanismo Europeu. Não podem contar para a dívida pública de cada país. Porque senão países como Portugal, Itália ou mesmo Espanha enfrentaram dificuldades ainda maiores no futuro.
Eu sei que alguns vão argumentar que, além da decisão da Comissão Europeia, há também o novo programa de compra de ativos pelo BCE, no valor de 750 mil M€. Isso também é importante, mas não chega. O BCE estará a comprar dívida no mercado secundário (dívida já emitida), mas isso não garante que haja investidores no mercado primário (a emissão de dívida para fazer face ao défice e aos reembolsos).
Por último, temos que assumir que estamos perante um evento disruptor para diversos aspetos da nossa vida. Um pouco como o 11 de setembro foi para a aviação e a segurança nos aeroportos, bem como para a geopolítica do Médio Oriente. Mas iremos adaptar-nos. Basta lembrar como é hoje diferente viajar de avião face ao que acontecia antes de 2001. Mas isso não significou uma redução das viagens de avião. Pelo contrário, as viagens de avião aumentaram muito significativamente nestes últimos 20 anos, embora obriguem a uma maior complexidade em termos de segurança. O covid-19 vai obrigar a repensar vários aspetos da nossa vida, desde o teletrabalho, as videoconferências, as compras online ou a segurança.
Post-Scriptum 1: Nunca percebi como é que, quando há mais de um ano atrás o tema foi referido pela primeira vez, o ministro Centeno não afastou logo a hipótese de ir para Governador do Banco de Portugal. Um economista conceituado como é o caso do Doutor Centeno sabe bem que é hoje consensual no ‘mainstream’ económico (aquilo a que se chama a síntese neoclássica) a necessidade de independência do Banco Central. O Presidente do Eurogrupo sabe bem a importância que um Banco de Portugal forte, independente e prestigiado tem no contexto do Eurosistema. O Ministro das Finanças sabe bem a importância da supervisão bancária. E deve saber que alguém transitar quase diretamente de Ministro para Governador, nomeado pelo governo de que fez parte, coloca sérios conflitos de interesse.
Mas espanta-me ainda mais que hoje, com o país a atravessar uma crise muito grave, o ministro Centeno não esclareça que está disponível para continuar e enfrentar esta crise. E que não tenha desmentido a notícia do Expresso, que dava conta que o Presidente da República estaria a tentar convencê-lo a ficar.
Governar em conjuntura muito favorável (crescimento económico, turismo e imobiliário em alta graças às reformas que foram feitas anteriormente, taxas de juro zero ou mesmo negativas, dividendo orçamental de tudo isto a que se somam mais mil milhões/ano de receita do Banco de Portugal) é fácil. Mas mesmo nessa conjuntura favorável, o equilíbrio nominal obrigou a uma degradação dos serviços públicos como nunca visto, a um mínimo histórico de investimento público e à maior carga fiscal de sempre. Difícil é aguentar a pressão em tempos muito conturbados. Se o piloto, depois de uns anos de mar calmo, quer abandonar o navio quando o mar fica em tempestade (nem que seja para depois culpar o sucessor pelas dificuldades da travessia) que faça favor e saia. Desde que isso não sirva para ir para um lugar simpático. Serve-se Portugal nas horas difíceis, não nas horas fáceis.
Post-Scriptum 2: Nesta crise tem havido da parte da extrema-esquerda e de alguma esquerda o decretar da falência do capitalismo, do liberalismo e da globalização. Nada mais errado. Nenhum liberal acredita ou defende que o Estado não deva existir. Isso só existe na cabeça de alguma esquerda. Um liberal defende que o Estado deve ser forte, capaz e eficiente naquilo que são as suas funções centrais. Essas funções são aquelas que só o Estado pode prover, pelo seu poder de autoridade (aquilo que se designa por “ius imperium”) e pelo facto de não procurar nenhum interesse específico ou particular mas sim o interesse geral de um país (ou uma região, cidade, etc.). Essas funções são as que se designam de soberania: as funções em que o Estado protege os cidadãos, seja de uma agressão externa (Exército e Diplomacia), seja de agressões internas (polícia, justiça, prisões), seja de crises de saúde pública como a que vivemos neste momento. Para isso, o Estado tem o poder de “ius imperium” para usar a força, de forma proporcional, à ameaça e agressão. E para isso, o Estado tem o poder de “ius imperium” para cobrar impostos e taxas.
O desenvolvimento da economia levou a que o Estado tivesse a necessidade de exercer funções de regulação e supervisão de mercados particularmente sensíveis, nos quais existem “falhas de mercado”. Isto é, o mercado não consegue ter uma alocação eficiente dos recursos. Isso acontece ou porque é um monopólio (ex: o abastecimento de água), ou porque há poucos concorrentes (ex: telecomunicações ou energia), ou porque as externalidades positivas são elevadas (ex: educação ou saúde) ou ainda porque se trata de bens públicos (bens em que existe não rivalidade e não exclusão, como é o caso da Defesa, Polícia, Justiça ou iluminação pública – o seu consumo por um cidadão não priva outro cidadão de também beneficiar desse bem).
Assim, o que um liberal defende é muito simples. Deixar o mercado atuar onde este é mais eficiente. Ter um Estado capaz onde ele faz falta. E para isso o sistema capitalista, ao dar liberdade económica, de propriedade e de negócio é o único que permite maximizar a função utilidade dos recursos.
Ora, foi exatamente o capitalismo que levou grande parte da humanidade da miséria extrema que se viveu desde os tempos remotos até ao século XIX para uma situação de abundância e riqueza que se desenvolveu nos últimos 150 anos. Marx estava errado: o capitalismo não tornou os ricos mais ricos e os pobres mais pobres. Pelo contrário, criou uma enorme classe média que vive hoje com conforto e comodidades impensáveis há 100 anos atrás. Schumpeter dizia algo do género: “o capitalismo e a revolução industrial não tiveram como objetivo produzir mais meias de seda para as Rainhas, mas sim tornar as meias de seda acessíveis às camponesas”. Isso repercutiu-se numa escolaridade geral e num elevado número de pessoas com mais formação e sistemas de saúde impensáveis há algum tempo atrás.
Repare-se que nesta crise estamos fechados em casa, mas os supermercados e lojas continuam a ser abastecidas. Usamos redes sociais e aplicações para comunicar em aparelhos modernos, sejam portáteis, telemóveis ou tablets. Temos centenas de canais de oferta e podemos escolher quase todos os filmes para assistir. Lemos livros e jornais sem sair de casa. Sabemos tudo o que se passa em qualquer canto do mundo.
A globalização contribuiu para um aumento de riqueza sem precedentes. Dir-me-ão que contribuiu para um propagar rápido do covid-19. Mas então as pandemias de antigamente não se propagavam também e não matavam muito mais gente? E não é preciso recuar muito no tempo. Não é preciso ir à idade média e à Peste Negra. Ou ao século VI e à “praga de Justiniano”. Basta recuar 100 anos e pensar na “gripe Espanhola”. Matou entre 20 a 50 milhões de pessoas pelo mundo inteiro. O covid-19 não é a “gripe Espanhola” por uma razão simples: o mundo é hoje muito mais desenvolvido, muito mais rico e muito mais seguro. E isso resulta da combinação de 3 forças: capitalismo, liberalismo e globalização.
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