E agora, sr. Centeno?

  • Fernando Sobral
  • 28 Março 2020

Caminhamos para um outro país, para um novo modelo económico e social. Que nada tem a ver com “governos de salvação nacional” que vozes que não chegam aos céus já começaram a pedir.

O sr. Mário Centeno já foi equiparado ao sr. Cristiano Ronaldo. Não se sabe se pelos golos financeiros que marcou, se pelas fintas que fez para ter um OE tão higiénico como a Aldeia da Roupa Branca.

Durante os últimos meses, depois do sr. Centeno não ter conseguido ir para o FMI, o seu futuro foi digno de uma telenovela. Estamos mesmo espantados por não ter ido ao programa da sra. Cristina Ferreira abrir a sua alma e comungar com os portugueses como se consegue fazer um cozido sem chouriço, couves e farinheira. Ainda hoje não se sabe se o sr. Centeno vai para o Banco de Portugal, fica na cadeira de chefe do Eurogrupo, ou se dará a sua vida para continuar como Ministro das Finanças. É uma escolha difícil. O que o espera não é uma recompensa. É o destino incerto de um gladiador a entrar na arena do Coliseu de Roma no tempo de Nero.

Qualquer das tarefas requer uma poção mágica, digna da aldeia de Astérix. Depois da era dos superávites, vai chegar o tempo das dívidas públicas extremas, do desemprego crónico e, talvez, da inflação pouco controlável. Uma combinação explosiva, que nos lembra os tempos da República de Weimar. Quem estiver a guiar o leme das Finanças e da economia tem aqui uma tempestade digna da que destruíu a Invencível Armada (e, aí também, a marinha de guerra portuguesa da época).

O sr. Centeno, escolha o que escolher, será uma mistura de Panoramix, o mágico, e Cacofonix, o bardo que ninguém quer ouvir. Agora que Uderzo nos deixou, se verá como os seus personagens (e de Goscinny) se comportarão no mundo real. O que é também uma boa oportunidade para reler este clássico da Banda Desenhada da escola franco-belga.

No meio de todas as incertezas, o sr. Centeno conseguiu antecipar o seu momento de glória: 0,2% de superávite em 2019. Antecipa o que será impossível em 2020. É um feito digno das Olímpiadas. Mas, no auge da euforia, o sr. Centeno não conseguiu deixar de escorregar numa casca de banana e estatelar-se. Disse que o “investimento” feito no SNS permitiu ao país estar hoje “muito melhor equipado para responder aos desafios que se nos colocam”. Aqui, o sr. Centeno segue os passos pouco avisados de um mágico que diz que sai sair um coelho da cartola e acaba por aparecer uma rã. Como é evidente, desde há muitos anos que o SNS foi aliviado da sua carne e mesmo de parte do osso. Tudo isso teve a ver como uma estratégia arquitectada há muitos anos e a que o sr. Centeno apenas acrescentou mais umas cativações.

Criar um superávite foi uma tarefa digna de Hércules, mas a que vem a seguir será digna de um Zeus. Terá o sr. Centeno músculos para isso? Não serão contas de mercearia, as que aí vêm. Requerem mais do que lápis atrás da orelha e papel para fazer contas de somar e subtrair. Depois do coronavírus não se tratará só de salvar Bancos ou de equilibrar contas públicas.

A paz social e a estabilidade política e económica das nações vai ter de equilibrar-se nas balanças de “deve e haver” com desemprego, falências e menos dinheiro no bolso de cada um. Relembra-nos tudo isso Jacques Coeur, mestre que criou moeda para as necessidades guerreiras de Carlos VII de França, e que chegou a ser considerado um alquimista. Dizia-se que ele conseguia transformar metais básicos em prata. Talvez não o fizesse, mas conseguia criar moeda que deixou muita gente rica, incluindo o rei. Acabou perseguido, sobretudo por aqueles que lhe deviam dinheiro e riqueza.

Qualquer que seja o cargo que ocupará, o sr. Centeno não irá viver para a Terra dos Sonhos. Na Europa terá de esgrimir contra a cupidez e a avareza financeira e ética de países como a Alemanha, a Áustria e a Holanda. Em Portugal, seja como governador do Banco de Portugal ou como Ministro das Finanças, terá de ser um médico de clínica geral, sensato e atento às dores do país real e não no do Excel. Não se sabe se, para qualquer das tarefas, já pediu a um correio-expresso para lhe trazer da Gália uma poção mágica. Mas terá de a tomar. Ou a sua glória efémera, como ministro do superávite, terá uma validade inferior à dos iogurtes. Numa época em que os valores darão uma volta de 180 graus, o sr. Centeno tenderá a ler o sr. Lenine: “Que Fazer?”. Numa versão mais liberal, é claro.

Caminhamos para um outro país, para um novo modelo económico e social. Que nada tem a ver com “governos de salvação nacional” que vozes que não chegam aos céus já começaram a pedir. Tudo terá a ver com inteligência, transparência e liderança. Ver-se-á então se o sr. Centeno é o dono da poção mágica.

Sugestão da semana

Charles Dickens é um autor para estes dias. Não lendo as suas obras sobre a pobreza das cidades, podemos relaxar com um quase-policial, “O Mistério de Edwin Drood” (edição Relógio d’Água), agora editado. Um mistério sem solução óbvia.

  • Fernando Sobral
  • Jornalista

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