Infecção e Aventura

Na consciência de cada político circula o ruído branco de uma pergunta: “Onde é que aprendeste o que é o Infinito? Foi na contra-capa de um livro da Anita”.

De tarde costumo ouvir um grupo de jovens que da varanda purificam a rua com melodias do Cante Alentejano. As pessoas olham para o céu e aplaudem num gesto espontâneo de risos e de alegria. Mas há a sensação de que cada indivíduo é uma espécie de carta de um baralho fechado, incógnito, antigo, esquecido. Sonham com o refúgio campestre, distante das imagens da pandemia e próximo do ideal puro e bucólico da paisagem original.

A gente real está transformada em criaturas de um romance. É um mecanismo psicológico que nos poupa às investidas da realidade, pois nos romances as epidemias são sempre épicas, as doenças caminhos vermelhos para a redenção, os mortos voltam à vida a vinte páginas do fim e a infecção é uma palavra escrita no papel que não passa pela máscara cirúrgica contida que está na lógica do enredo. Nesta narrativa somos todos heróis.

De noite costumo ouvir o sussurro das Avé-Marias que se eleva do prédio em frente, a rua transformada pelo meio-tom da consciência que completa a escuridão amarela com uma espécie de paisagem dolorida no asfalto deserto, ao longe o nevoeiro que se liberta do rio sem barcos e que nos traz o reflexo monótono de uma luz londrina, de uma praça de Madrid, de uma catedral de Milão. Casas inexpressivas, caras inexpressivas, gestos inexpressivos, são a crónica de uma cidade em tempos de cólera.

As aventuras de viagem são aquelas em que o verdadeiro propósito é uma viagem interior. “Peter Pan” descobre que se quer verdadeiramente crescer terá de perder para sempre o Paraíso. “Moby Dick” não trata na realidade as contrariedades de um duelo entre o Homem e a Natureza, mas toda a acção se desenrola no dilema interior da consciência de Ahab. “D. Quixote” acaba por reconhecer em si a figura ridícula, o retrato do louco, o recorte extravagante do “cavaleiro da triste figura”.

Todo o português viajante na aventura da sua casa pode chegar ao conhecimento que não existe em nenhum outro lugar, vivendo para nos contar um dia a sua história. O conhecimento é para ser tido em casa, conquistar a topografia dos corredores iluminados, suportar a ansiedade dos salteadores, desafiar o conforto das tempestades e viajar sempre e sempre até às remotas paragens do nosso interior mais remoto e mais ao Norte.

Enquanto o Mundo se abriga e se recolhe, os Estados e as Instituições Internacionais oscilam erráticas sobre as previsões e as necessárias e urgentes medidas a tomar. Distante da “Política Normal”, é notória a distinção entre a “Grande Política” e a “Pequena Política”. A “Grande Política” é o território dos Estadistas, mais a vibração da História, mais a emoção da Memória – projecta-se nas decisões sobre a Vida e a Morte, expande-se nas atitudes sobre a Paz e a Guerra.

A “Pequena Política” é o vácuo da “Política Normal” em tempos democráticos normalizados e protegidos das ofensivas da Natureza, do Destino, dos Homens. Nestes grandes lentos dias só conhecem a luz os Pequenos Políticos, porque só conhecem a “Pequena Política” no círculo fechado de uma ronda de negociações.

A lógica de uma ronda de negociações é a versão de uma ideologia, o “Economismo”, um sistema de convicções que filtra a realidade com base num alfabeto normalizado de modelos simplificados e curvas mais ou menos exóticas. Em cada momento, o propósito da ideologia é a maximização da utilidade em toda e qualquer circunstância.

O “Economismo” é indiferente à complexidade, à narrativa mais profunda do contexto histórico e local, e completamente opaco ao poder transformativo das emoções humanas. Na lógica impenitente do “Economismo”, parece que a situação actual de uma pandemia global implica a falsa escolha entre a protecção e salvaguarda de milhões de vidas ou a protecção e salvaguarda da economia global.

Esta postura política ignora ou desconhece que não existe economia sem a livre interacção dos indivíduos, os indivíduos acrescentam uma projecção moral à dimensão económica. Como tal, o entendimento de uma opção que implica a exclusão da outra opção, um sucedâneo macabro de um jogo de soma nula, provocará uma catástrofe humanitária ou uma depressão económica em escala e em dimensão inatingíveis pela experiência e pela imaginação.

Este critério ilumina as indecisões da Europa, desmistifica o discurso da América, denuncia o nativismo no Brasil. A fotografia do “Economismo” tem os tons descoloridos de uma recordação distante – o comércio mundial transformado num parágrafo de um compêndio escolar, transformado pela morte, pelo medo da infecção, pelo trauma nas sociedades, pela desorientação política e pela agitação social.

As teorias económicas e as decisões políticas não se fazem nas filas de um supermercado, nem na distância higiénica à porta de uma farmácia, nem no cenário de azul e carne ao som dos alarmes numa sala dos cuidados intensivos. Vejam os rostos de médicos e enfermeiros, homens e mulheres no limite da insurreição emocional, rostos riscados de negro e sangue pelas máscaras de protecção. O olhar vazio de um brilho basso remete-nos para a ideia de uma “Idade Mórbida”, para o requisito silencioso que escorre pela pele num pedido impossível “Nunca Mais!”, uma mensagem da Cidade dos Mortos para a Cidade dos Vivos. Na consciência de cada político circula o ruído branco de uma pergunta: “Onde é que aprendeste o que é o Infinito? Foi na contra-capa de um livro da Anita”.

Nota: Por opção, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

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