O economista Miguel de Faria e Castro identifica cerca de 1,419 milhões de trabalhadores em risco de desemprego em Portugal. E avalia dois cenários possíveis para estes trabalhadores.
À medida que a pandemia da Covid-19 se alastra pelas economias avançadas, a principal resposta a nível de políticas de mitigação e contenção tem sido políticas de isolamento e distanciamento social. Este tipo de medidas envolve, necessariamente, o fecho de setores inteiros da economia. Note-se que ao contrario do que acontece numa recessão ou crise “normal”, esta desaceleração da economia é propositada e controlada, tendo como objetivo principal a resolução da atual crise de saúde publica. Esta desaceleração implica inevitavelmente custos económicos e sociais, sendo o desemprego uma das suas principais manifestações.
Numa analise recente [1], combinei dados sobre a composição setorial do emprego nos Estados Unidos da América com o fim de calcular o numero de trabalhadores que poderão estar em risco de despedimento devido à crise da Covid-19, e qual poderá vir a ser a taxa de desemprego num cenário desastroso. Neste artigo, tento realizar uma análise semelhante para Portugal. Note-se que estes são cálculos muito simples, com base em informação publicamente disponível, com várias limitações, e cuja interpretação se encontra sujeita a varias condicionantes. De qualquer forma, é um exercício útil, para compreender a exposição da economia portuguesa a um choque desta natureza.
A principal hipótese da qual partem os cálculos é o facto de esta desaceleração controlada não afetar todos os setores da economia por igual. As medidas de distanciamento social tendem a afetar desproporcionalmente atividades que envolvem elevado contacto físico com outras pessoas como por exemplo a restauração e o turismo.
Condições Iniciais
O ponto de partida dos cálculos é o estado da economia portuguesa no final de 2019. De acordo com o Eurostat, a taxa de desemprego era de 6,8% e na população ativa estavam cerca de 4.976 milhões de pessoas. Logo, havia cerca de 338 mil desempregados em Portugal.
Composição setorial do emprego em Portugal
O Eurostat disponibiliza também estatísticas relativas à composição do emprego em Portugal por setores de atividade (NACE, 2 dígitos). Isto é, o Eurostat diz-nos quantos trabalhadores estavam empregados em diferentes setores em finais de 2019, sendo que o nível de detalhe desses setores é relativamente alto: desde pescas e aquacultura até reparo de computadores e bens domésticos, passando por atividades veterinárias, atividades de segurança privada, etc. E’ possível classificar estes setores relativamente à sua exposição ao choque gerado pela pandemia. Isto requer, obviamente, algumas hipóteses que são potencialmente discutíveis.
Neste exercício, adoto um sistema de classificação muito simples, e, com base noutros estudos sobre exposição de diferentes setores a este choque [2], atribuo a cada setor uma percentagem de “trabalhadores em risco”. [3] Vários não se encontram diretamente afetados:
- Subsetores dos setores primário e secundário, por exemplo, ou administração pública e saúde.
- Setores que podem ser afetados, mas não necessariamente muito, incluem construção civil, reparo de equipamentos, ou educação.
- Setores que podem ser bastante afetados incluem hotelaria, serviços de restauração, transportes aéreos, e comércio de retalho, entre outros.
Número de trabalhadores em risco
Com base nesta classificação, estimo que cerca de 1,419 milhões de trabalhadores se encontram em risco em Portugal. Os maiores setores (em termos de grau de exposição multiplicado por trabalhadores nesse setor) são retalho, serviços de restauração, e hotelaria, o que reflete a importância do turismo na economia portuguesa.
Num cenário absolutamente desastroso em que todos esses trabalhadores efetivamente perdessem o seu emprego durante os dois primeiros trimestres de 2020, e nenhum dos desempregados no início do ano arranjasse emprego, Portugal poder-se-ia ver a braços com 1,757 milhões de desempregos. A taxa de desemprego da economia portuguesa poderia ascender a 35,3%.
Este cálculo assume um cenário catastrófico, e ignora muitos aspetos que devem ser notados. Um ponto crucial é a duração do choque: se a expectativa das empresas é de que a situação de saúde pública seja resolvida rapidamente, muitas empresas podem decidir suspender contratos temporariamente (“lay off”) em vez de despedir esses trabalhadores. Se o choque passar rapidamente, várias empresas podem ter os recursos de tesouraria para sobreviver. Se o choque for mais permanente, contudo, várias empresas poderão ter de fechar permanentemente.
Outro fator muito importante que esta análise ignora são os efeitos de várias medidas orçamentais que têm sido discutidas, como a criação de linhas de crédito especiais para empresas particularmente afetadas, como a Capitalizar 2018-Covid 2019.
Num cenário absolutamente desastroso em que todos esses trabalhadores efetivamente perdessem o seu emprego durante os dois primeiros trimestres de 2020, e nenhum dos desempregados no início do ano arranjasse emprego, Portugal poder-se-ia ver a braços com 1,757 milhões de desempregados. A taxa de desemprego da economia portuguesa poderia ascender a 35,3%.
Em vários países como os EUA ou a Alemanha, programas deste género têm sido criados com condições especiais para prevenir despedimentos. Finalmente, ignoro nesta análise o potencial de teletrabalho de diferentes setores e industrias. Numa análise recente, Pedro S. Martins conclui que apenas cerca de 9% dos trabalhadores em Portugal conseguem desempenhar as suas profissões em teletrabalho. [4]
Por outro lado, este é um cálculo do impacto direto deste choque no emprego. Na prática, é possível que vários outros setores, mesmo que não diretamente afetados, sejam afetados de forma indireta pela desaceleração da procura. Um bom exemplo é o fabrico de automóveis, um setor que emprega cerca de 67 mil pessoas em Portugal e que será provavelmente bastante afetado de forma indireta.
Finalmente, é importante também ter em conta que muitos dos trabalhadores nestes setores mais afetados são potencialmente alguns dos elementos mais vulneráveis da sociedade. Um estudo recente para os EUA determina que os trabalhadores com menor capacidade de conseguir realizar teletrabalho tendem a ser mais pobres e com menos qualificações, sendo que mulheres são particularmente afetadas. [5]
Duração do choque
Como já referi, a duração do atual choque será absolutamente essencial para determinar os seus efeitos, nomeadamente a rapidez da retoma.
Num cenário ideal, o choque seria relativamente curto e não resulta numa grande destruição de empresas e relações empresa-trabalhador. Nesse caso, assim que a situação de saúde pública se torna mais estável e as medidas de isolamento social são retiradas, podemos ter uma situação em que toda a gente “regressa ao trabalho”, e a retoma é relativamente rápida (a chamada recessão em “V”). Mesmo que o desemprego e a queda do PIB atinjam níveis nunca antes vistos, a situação poderia ser “normal” no final do ano.
Um cenário mais dramático é aquele em que a situação de saúde pública não é controlada num curto espaço de tempo. Nesse caso, como ilustram os meus simples cálculos, a situação pode-se agravar para circunstâncias nunca antes vistas em democracia em Portugal. Uma grande destruição de relações entre empresas e trabalhadores é particularmente grave para uma economia não muito dinâmica como a portuguesa. Isto pode levar a uma recessão profunda, e a uma recuperação lenta (em “U”).
O que é que nos pode atirar para este cenário dramático?
Por um lado, a situação de saúde pública pode ser imprevisível e difícil de controlar, mesmo com medidas de distanciamento social em vigor. Outra coisa que pode correr mal é o levantamento destas medidas de contenção demasiado cedo, antes de a pandemia estar controlada. Num caso destes, mesmo que os trabalhadores possam regressar aos postos de trabalho, é provável que a procura não tenha recuperado (estaria disposto a ir jantar fora, sabendo que o vírus ainda anda por ai?).
Tentar apoiar a economia ignorando a situação de saúde pública pode ser bastante prejudicial para a própria economia.
[1] Faria e Castro, M. (2020) Back-of-the-Envelope Estimates of Next Quarter’s Unemployment Rate. On The Economy Blog, Federal Reserve Bank of St. Louis. https://www.stlouisfed.org/on-the-economy/2020/march/back-envelope-estimates-next-quarters-unemployment-rate
[2] Leibovici, F., A. M. Santacreu & M. Famiglietti (2020) Social Distancing and Contact-Intensive Occupations. On The Economy Blog, Federal Reserve Bank of St. Louis. https://www.stlouisfed.org/on-the-economy/2020/march/social-distancing-contact-intensive-occupations.
[3] A cada setor é atribuída uma percentagem de 0, 25, 50, ou 100.
[4] Para uma analise recente do teletrabalho em Portugal ver Martins, P. S. (2020) O potencial do teletrabalho em Portugal. Mimeo, Queen Mary University of London.
[5] Mongey & Weinberg (2020) “Characteristics of workers in low work-from-home and high personal-proximity occupations”, mimeo, University of Chicago. http://www.simonmongey.com/uploads/6/5/6/6/65665741/mw_covid_occupations_v1.pdf
Nota: As opiniões aqui expressas vinculam somente o autor e não refletem as posições do Federal Reserve Bank of St. Louis, ou do Federal Reserve System.
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Desemprego e Covid-19: alguns cálculos simples para Portugal
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