Como poderá funcionar um fundo europeu de recuperação (e de solidariedade)?

Quem sabe se uma solução inovadora de financiamento do fundo de recuperação não poderá ser o primeiro passo rumo a uma verdadeira união económica e monetária?

Mais uma vez a Europa enfrenta escolhas difíceis. Só com algum financiamento comum será possível, para todos os países, financiar a recuperação desta crise. Ainda que não resolva completamente os problemas da sustentabilidade da dívida dos países em situação mais frágil, a criação de um fundo comum, de recuperação, com uma capacidade de financiamento de 1 bilião de euros, garantido pelo orçamento comunitário ou pelos estados membros, poderia pelo menos reduzir os custos de financiamento e demonstrar algum nível mínimo de solidariedade. Neste artigo apresento uma proposta de como poderá ser constituído esse fundo.

Ao longo dos últimos meses a Europa tardou a tomar medidas. É certo que as decisões foram bastante mais rápidas do que no passado, mas isso por si só não serve de grande alivio já que a crise atual também é a maior alguma vez enfrentada pela União.

O BCE assume-se mais uma vez como o salvador a curto/médio prazo da área do euro, quer através do seu programa de compra de divida pública, quer pelas medidas de cedência de liquidez ao sistema financeiro. Já da parte dos governos, a resposta fica ainda aquém do necessário.

As medidas acordadas pelos ministros das finanças são um bom primeiro passo, mas não chegam, não só para mitigar o impacto de curto prazo da crise – ficam bastante abaixo do que os vários estados anunciaram individualmente – mas, principalmente para reduzir o impacto da crise a mais longo prazo:

  1. O programa do MEE é curto (e até pode ser desnecessário já que o seu grande incentivo, a ativação das compras do BCE, já esta garantido);
  2. As garantias de crédito do BEI são bastante úteis mas o seu valor de 200 mil milhões de euros para toda a União pode pecar por escasso (representa menos de 10% das garantias que todos os estados anunciaram individualmente).
  3. O programa de financiamento ao emprego por parte da Comissão Europeia (SURE) é uma boa medida, e inovadora. Caso haja vontade para isso, pode até constituir o embrião de um seguro europeu de desemprego. No entanto, 100 mil milhões de euros é bastante curto para o desafio que se avizinha.

Na falta de uma resposta comum, a diferente capacidade orçamental dos países Europeus restringe a sua resposta à crise. Assim, depois de um choque externo simétrico, a falta dessa resposta comum levará a uma maior dispersão económica na união. Algo ainda mais gritante dentro da área do euro, onde por exemplo, a Alemanha terminará este ano com uma dívida pública abaixo dos 70% do PIB e uma taxa de desemprego de perto de 4% e a Itália virá a sua dívida pública atingir mais do dobro (155% do PIB) e o desemprego mais do triplo (perto de 13%).

Ora, depois de terem recebido o mandato dos chefes de governo para proporem um instrumento orçamental comum (que não passasse por Eurobonds ou Coronabonds), os ministros da Finanças “chutaram” de volta para os primeiros ministros com um novo nome inspirado numa proposta francesa: um fundo de recuperação económica.

Este fundo deverá usar instrumentos financeiros inovadores: à boa maneira europeia, uma expressão que é suficientemente vaga para agradar aos defensores de eurobonds e para deixar descansados os seus opositores… E nos últimos dias têm surgido várias notícias que apontam para duas hipóteses de financiamento comum:

  1. Dedicar parte do próximo orçamento comunitário ao financiamento de longo prazo relacionado com a saída da crise (algo bastante desapontante já que não implicaria criação de nenhum novo instrumento mesmo que se tente dar essa impressão).
  2. Criar um fundo de recuperação com garantias dos estados membros ou do orçamento da UE. Este fundo poderia então emitir divida em mercado destinada a financiar a recuperação económica de todos os estados membros (semelhante à proposta feita pela Franca).

E como poderá então funcionar esse fundo de recuperação (e de solidariedade)?

Qual a sua capacidade? Tendo em conta que teria de ser destinado a acomodar o impacto económico da COVID 19, o ponto de partida teria de ser pelo menos o aumento do défice público em 2020. Segundo o FMI, o défice da área do euro irá passar de 0.7% do PIB em 2019, para 7.5%. Assumindo o MEE a variação para a todos os países da UE chega-se a um valor próximo de 1 Bilião de euros (1 trn). Tendo em conta que o MEE já poderá financiar 200 mil milhões e o SURE 100 mil milhões, restariam cerca de 700 mil milhões (cerca de 5% do PIB da UE), ou 900 mil milhões (cerca de 6,5% do PIB) caso o financiamento do MEE seja excluído por se tratar de um mecanismo de emergência.

E como seria financiado? Ora, se a emissão de dívida comum está fora de causa, porque não adjudicar parte do próximo orçamento comunitário (de 2021 a 2027) para criar as garantias ou capital para este fundo que depois emitiria dívida em mercado ou através de outras instituições como o BEI ou o MEE?

E aqui é onde a alquimia financeira, tão habitual na Europa, entraria. Tomando a estrutura do MEE como exemplo: o mecanismo (permanente) tem um capital subscrito pelos Estados da área do Euro de 80 mil milhões de euros e tem uma capacidade de empréstimos (via emissões de divida em mercado) de 500 mil milhões. Neste caso, com garantias semelhantes, seriam necessários 160 mil milhões de euros ou até menos já que os projetos financiados por este fundo seriam para todos os países da UE, e, portanto, menos arriscados do que os programas do MEE que se destinam a países em dificuldades.

Estrutura de capital e capacidade de financiamento do Fundo de Recuperação

Fonte: Eurostat e cálculos do autor

Cada país contribuiria com o equivalente à sua percentagem no PIB da união, e para evitar os receios dos países do norte, mais preocupados, cada país poderia estar inicialmente limitado a uma percentagem correspondente ao seu peso na UE como está na tabela 1 em cima. Por exemplo, Portugal contribuiria com 1,5% para o capital do fundo (2,4 mil milhões de euros) e teria direito a cerca 14 mil milhões de euros.

No entanto, nem todos os países teriam incentivos ou necessidade de recorrer a este fundo, já que o seu custo de financiamento continuaria abaixo do custo do financiamento comum. Como se vê na tabela 2 onde se compara o custo de emissão de dívida a 7 anos (prazo médio da maioria dos países europeus) pelo MEE e pelos vários países do Euro, a Áustria, Alemanha, Finlândia, França (marginalmente) e Holanda podem neste momento emitir dívida abaixo do custo do MEE.

Neste caso, o financiamento não utilizado por estes países (ou por outros países da UE que emitem a baixo custo como a Dinamarca ou Suécia) poderia ser posteriormente cedido aos outros, sendo avaliado caso a caso, pela comissão ou pelo conselho europeu.

Custos de financiamento e poupança por recurso ao Fundo de Recuperação

Fonte: Bloomberg, Eurostat e cálculos do autor.

Este fundo poderia estar disponível nos próximos 3 ou 4 anos, enquanto os efeitos da crise da COVID19 vigorassem (ou durante o próximo quadro comunitário), mas a sua dívida seria emitida num prazo mais longo – 20, 30 ou ate 50 anos.

Esta dívida também poderia ser comprada pelo BCE em mercado secundário, podendo o banco central comprometer-se a reinvestir também durante um prazo bastante longo (mais de 50 anos), constituindo na prática um “perdão” do valor presente desta dívida, algo que ajudaria a sustentabilidade da dívida dos países mais frágeis.

Não é a solução ideal. Mas qualquer pacote ou instrumento de menor dimensão não será suficiente para financiar a recuperação desta que será a maior recessão em quase 100 anos. Para alguns países esta ideia pode parecer demais, para outros, é menos do que desejam ou precisam. Mas quem sabe se esta solução ou alguma semelhante não poderá ser o primeiro passo rumo a uma verdadeira união económica e monetária?

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