Sulista, elitista, iliberal

Este ano Portugal poderá ter a pior performance económica dos últimos 100 anos. A intenção de injectar mil milhões na TAP é um insulto.

Para além de todos os riscos visíveis e directos, esta crise traz consigo um conjunto de riscos escondidos. Um deles é a possibilidade de que com a justificação da situação de excepcionalidade venha a ser utilizado dinheiro público para beneficiar clientelas, empresas de amigos do regime ou empresas que nunca tiveram viabilidade.

Nos próximos tempos será importante escrutinar de perto os beneficiários de ajustes diretos, os vencedores de concursos públicos feitos à pressa e os beneficiários das ajudas estatais a empresas. O risco de entrar dinheiro dos contribuintes para salvar empresas cujas dificuldades não resultaram da pandemia é real. E não há melhor exemplo disto do que a TAP.

Quando o turismo cresceu mais do que nunca, numa altura em que até muitos se queixavam de haver “turismo a mais”, em que a TAP deveria ter lucros recorde, a TAP continuou a ter prejuízos. Não haverá melhor indicador da inviabilidade da TAP do que esse. Se nem com o negócio em alta, a TAP consegue deixar de ter prejuízos, qual o objectivo de a salvar? O argumento utilizado é de que a TAP é uma empresa estratégica que serve o país. O problema é que a TAP não só tem provado ser uma empresa inviável, como tem revelado que não serve o país: Serve preferencialmente as elites de uma parte do território.

A TAP há muito tempo tomou a decisão estratégica de se concentrar em Lisboa. Em boa verdade, o resto do país não se pode queixar muito disto. No Porto, por exemplo, o fecho de várias rotas a partir do Aeroporto Francisco Sá Carneiro pela TAP permitiu a entrada de companhias aéreas estrangeiras com vôos mais baratos e mais pontuais. Mas a intenção estava lá: A TAP, a tal companhia aérea de bandeira, aposta apenas em Lisboa, mesmo sobrevivendo à custa do dinheiro de todos os contribuintes. Um bom sintoma desta forma de ver a sua missão no país é a intenção revelada recentemente de regressar com 71 rotas a partir de Lisboa e 3 a partir do Porto. Um dos erros de achar que a TAP é uma companhia estratégica nacional é a parte do nacional. A TAP não é nacional, é lisboeta (bem sei que para alguns não haverá grande diferença, mas não é para esses que escrevo).

A TAP é também uma empresa elitista, com voos caros, desajustados às necessidades dos consumidores domésticos, servindo essencialmente as necessidades de uma pequena elite política e económica. Para a esmagadora maioria dos portugueses que não vive em Lisboa e não pertence a esta elite, a TAP é só um peso na sua carteira. Pagam através de impostos a existência de uma companhia aérea que quase nunca usam. É, também, uma empresa onde não se vislumbra meritocracia na gestão, onde demasiados administradores são escolhidos pela proximidade ao poder, já que é pelo poder, pela influência no estado, e não pelo serviço aos clientes, que a TAP sobrevive. Uma empresa iliberal, portanto.

Também não se vislumbra racional económico em injectar dinheiro público na TAP. A TAP tem tido prejuízos permanentes e, com a crise da aviação, não se espera que isso venha a mudar tão cedo. A maioria dos países europeus sobrevive bem sem uma companhia aérea pública. Tal como aconteceu noutros países, e no Porto quando a TAP cortou rotas no Aeroporto Francisco Sá Carneiro, os voos da TAP seriam rapidamente substituídos por outras companhias áreas, o seu staff rapidamente contratado por essas companhias e os clientes passariam a ter mais opções. O único “benefício” que retiraremos em injectar dinheiro na TAP é o privilégio de daqui a uns anos voltarmos a injectar dinheiro na TAP.

Para termos uma ideia daquilo que está a ser planeado, o dinheiro que se planeia injectar na TAP daria para acabar com as listas de espera para consultas no SNS e ainda sobraria para baixar alguns impostos, estimulando a economia. Tudo isto para que uma parte do país, Lisboa, continue a ter voos caros e frequentemente atrasados. Tudo isto para que uma elite que junta uma visão estatista da sociedade a um nacionalismo bacoco possa continuar a bater no peito, dizendo que tem uma companhia aérea nacional pública, algo que a maioria dos países europeus deixou de ter há muito tempo.

Este ano Portugal poderá ter a pior performance económica dos últimos 100 anos. Numa fase em que tantas famílias irão passar dificuldades, em que tantos pequenos negócios irão falir, em que tantos irão arriscar o seu património pessoal para continuar a pagar salários, em que tantas operações ficarão por fazer no SNS por falta de meio, a intenção de injectar mil milhões na TAP é um insulto. Tendo sido contra a injecção de dinheiro na banca, percebi o argumento do risco sistémico, mas no caso da TAP nem isso existe. Vamos desperdiçar dinheiro, na altura em que ele mais faz falta para sustentar os luxos de uma elite, para salvar uma empresa sulista, elitista e iliberal. Revoltemo-nos. Nem mais um euro para a TAP.

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