A crise da Covid-19 e a dívida pública

Com esta crise e o aumento da dívida pública de forma significativa, como ficará o financiamento da República? Será o programa do BCE e a almofada de liquidez suficientes.

Os efeitos económicos provocados pela Covid-19 serão uma quebra do PIB em 2020 e uma recuperação a partir de 2021. Não é possível neste momento aferir quer a dimensão da quebra, quer o nível de recuperação e a sua rapidez.

Os números da Comissão Europeia são um pouco mais otimistas que os do FMI. As estimativas oficiais da Comissão Europeia apontam para 2020 uma quebra do PIB da zona Euro e de Portugal de 7.7% e 6.8%, respetivamente. Já o FMI aponta para uma quebra de 7.5% para a zona Euro e de 8% para Portugal. Ambas as instituições apostam, contudo, numa rápida recuperação em 2021. A Comissão prevê um crescimento de 6.3% e de 5.8% para a zona Euro e Portugal, respetivamente. O FMI aponta para 4.7% e 5%.

Note-se que a recuperação de 2021 é significativa nestas projeções, mas não o suficiente para recuperar a quebra de 2020. Para Portugal, olhando para as previsões do FMI, uma base 100 em 2019 significará um valor de produto de 92 em 2020 e 97 em 2021. Para recuperar para a base 100, o PIB teria de crescer, em 2022, cerca de 3.5% Se usarmos as projeções da Comissão, então temos uma base 93 para 2020 e 98 para 2021. Para voltar à base 100 em 2022, o PIB teria de crescer 1.5%.

Ora, uma crise desta dimensão terá sempre impactos orçamentais.

  • Por um lado, se o PIB cair 7%-8%, e considerando a despesa extraordinária provocada pela Covid-19 (lay-off, apoios, despesa com o SNS, etc.), o défice em 2020 ficará seguramente nos 6% ou 7%. Isso colocará a dívida pública no final deste ano em torno dos 135%.

Refira-se que todos os países terão uma subida da divida pública de pelo menos 10 p.p. do PIB, e nalguns casos de 15 ou 20 p.p.. Mas como tenho dito aqui, o ponto de partida é substancialmente diferente. Alemanha ou Holanda partem de dívidas públicas abaixo dos 60%. Portugal parte dos 120%, a Itália dos 135% e a Grécia dos 180%.

Estes países mais endividados são também os que têm economias e estruturas sociais mais frágeis. Este aumento significativo de divida pública é preocupante. Estarão os mercados recetivos a continuar a financiar estes países? Por um lado, as agências de rating já começaram a dar sinais de preocupação.

  • Por outro lado, o BCE continua a atuar no âmbito da política monetária. O BCE tem um programa de compra de ativos que soma quase 1 trilião (notação Americana) de euros. Será suficiente?

Dada a chave de capital do BCE, Portugal representa cerca de 1.95% do capital. Isso significa que, para Portugal, o programa do BCE tem cerca de 20 biliões (20 bis). Recorde-se que o programa, para já, só durará até ao final de 2020. Recorde-se também que o programa se destina a compra de ativos públicos, mas também do setor privado. Mas, ao contrário do anterior programa, que vigorou entre 2015 e 2018, este não tem limite de compras por linha de OT´s ou BT´s. Isto é, o anterior programa tinha um limite de compra de dívida por país (resultante da chave de capital), mas tinha também um limite de não comprar mais de 1/3 da dívida pública em BT´s e OT´s do país, nem comprar mais de 1/3 de cada linha de financiamento que existisse no mercado. Isso não sucede com este programa, o que é uma enorme vantagem para Portugal.

Como será o financiamento da dívida pública em 2020?

No OE 2020, antes da crise da Covid-19, o Governo previa necessidades brutas de financiamento na ordem dos 46 bis. Desse valor, 9.5 bis eram necessidades líquidas de financiamento e 36.5 eram reembolsos de dívida. Desses 46 bis, o governo previa emitir 13 bis de BT´s, 17 bis de OT´s e 16 bis de outra dívida não transacionável (de curto e longo prazo).

Portugal tem agora em junho o reembolso de uma linha de OT´s, designada junho 2010/2020. Isto é, uma OT a 10 anos, emitida em junho de 2010, a 4.8%. Essa linha vale 8 bis. Desse valor, o Eurosistema (BCE e Banco de Portugal) terão 1/3, ou seja, cerca de 2.7 bis, que serão recomprados. Será então preciso financiar 5.3 bis. Refira-se que estes 2.7 bis não contarão para os 20 bis do novo programa do BCE. Isto porque é apenas o “roll-over” da dívida já existente no Eurosistema.

Vamos admitir que para Portugal as compras do programa do BCE são apenas de dívida pública, por uma questão de simplificação. Vamos também considerar que à data existe cerca de 14 bis em depósitos no IGCP, embora este valor talvez seja de não considerar, por duas razões: tenderá a baixar um pouco dado os pagamentos que o Estado vai fazendo das suas dívidas comerciais e terá sempre de se manter um valor próximo dos 10 bis para assegurar estabilidade. A somar a isso, existe alguma margem, talvez 2 a 3 bis, para aumentar o financiamento líquido de BT´s (o próprio governo, no OE 2020, já previa aumentar o peso dos BT´s em 1.3 bis).

Mas agora com esta crise e o aumento da dívida pública de forma significativa, como ficará o financiamento da República? Será o programa do BCE e a almofada de liquidez suficientes, ou a exposição ao mercado tornou-se muito significativa, com os riscos inerentes a essa situação?

O que existe do lado das necessidades de financiamento? Há que reembolsar 12 bis de BT´s e 8 bis de OT´s, bem como 16.5 bis de outra divida não transacionável (nota: aqui estamos a falar do que tem de ser reembolsado, antes estávamos a falar do plano de emissões previsto no OE 2020 e que agora se encontra desatualizado, face a esta crise e ao aumento do défice em 2020). Mas há que financiar as necessidades líquidas de financiamento previstas no OE2020, de 9.5 bis, e o aumento do défice de 2020, em cerca de 15 bis em resultado das medidas de combate à crise derivada da pandemia Covid-19. Tudo somado cerca de 61 bis.

O que é que existe do lado do financiamento? É perfeitamente possível aumentar a exposição a BT´s, pelo que podemos emitir 15 bis de BT´s (12 para reembolso das BT´s e mais 3 bis de nova dívida). Depois é perfeitamente possível emitir 16.5 bis de outra divida não transacionável, conforme já estava previsto, para pagar o mesmo montante que vence este ano.

Mas ficam a faltar 30 bis, que terão de ser financiados por OT´s. Mesmo considerando os 2.7 bis do BCE no “roll-over” da OT de junho, como atrás referido, ficam a faltar cerca de 27 bis.

Ora, como referi, o programa do BCE tem previsto para compras de dívida pública de Portugal cerca de 20 bis.

Isso significa que Portugal terá de ir aos mercados financiar-se em 27 bis (em mercado primário), sabendo que o Banco de Portugal e o BCE comprarão 20 bis dessa dívida (em mercado secundário).

Temos assim que o programa do BCE não cobre todas as necessidades de financiamento da República. Cobre uma grande parte, mas haverá sempre a necessidade de ir ao mercado e por valores acima daqueles que depois o BCE pode comprar em mercado secundário.

Convém por isso manter uma atenção especial na evolução dos mercados e na evolução da dívida pública de Portugal, mas também de outros países. Uma eventual turbulência dos mercados dificilmente começará por Portugal mas, se surgirem problemas em Itália ou Espanha, estes terão um efeito de contaminação muito perigoso.

Se a economia recuperar próximo de “V” e os mercados financeiros, via atuação do BCE, se mantiverem calmos, a pressão orçamental pode não ser muito significativa. O FMI aponta um défice para Portugal de 7% em 2020 e de 2% em 2021. Para o défice estrutural, a previsão é de 4.6% em 2020 e de 1.5% em 2021. Isso implicará algum ajustamento estrutural, mas se houver tempo (ou seja, mercados financeiros calmos e pouca pressão das regras Europeias) as medidas de consolidação orçamental podem não ser muito duras.

Mas se a recuperação for lenta (em “U” ou mesmo em “L”) e se isso for conjugado com uma forte turbulência dos mercados financeiros, então o problema orçamental poderá ressurgir. E desta vez com um nível de dívida pública muito mais elevado, mais do dobro do de 2008.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

A crise da Covid-19 e a dívida pública

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião