Os bancos centrais e a distorção dos mercados

As autoridades monetárias devem funcionar como financiadores de último recurso, porém, não deveriam constituir-se como artífices de economias zombie nem de mercados distorcidos.

Nas últimas semanas, intensificaram-se as vozes que têm vindo a alertar para uma cada vez maior discrepância entre a realidade económica e as cotações dos mercados bolsistas. A crítica é dirigida sobretudo ao comportamento dos mercados norte-americanos, já que no resto do mundo a evolução mais recente das bolsas de valores tem sido modesta. Segundo a Reserva Federal de Nova Iorque, com base em dados macroeconómicos obtidos em tempo real (o chamado “nowcast”), neste segundo trimestre de 2020, o PIB norte-americano deverá afundar 30% numa base anual. A estimativa aponta, portanto, para uma depressão económica.

Todavia, em face da recente valorização das cotações bolsistas nos EUA, a depressão implícita às previsões macroeconómicas da Reserva Federal, que inicialmente levou a uma forte correcção das bolsas de valores, parece ter dado lugar nas últimas semanas a um optimismo aparentemente inusitado dos investidores.

Em Abril, o índice SP500 recuperou integralmente das perdas de Março e, segundo estimativas da JP Morgan, a capitalização bolsista do SP500 em proporção do PIB norte-americano estará agora ao mais alto nível desde o tempo da bolha tecnológica de 2000. Será mais um episódio de irracionalidade exuberante? Ou haverá outras razões que o justificam?

As bolsas de valores não seguem caminhos lineares. A formação de cotações representa, por definição, um processo de descoberta de preço, que resulta da sua aplicação aos vários preços (valores) que constituem os índices. Há frequentemente falsos sinais. Por exemplo, na Grande Depressão de 1929, o índice Dow Jones atingiu um máximo de 381 pontos no dia 3 de Setembro de 1929. O índice desvalorizou depois para 325 pontos no final desse mês de Setembro, mas a 14 de Outubro já havia recuperado para 352. Só então começou a grande desvalorização, que se prolongaria até 8 de Julho de 1932, data em que o índice atingiu um mínimo de 41 pontos.

Naquele período histórico de dois anos e meio, entre finais de 1929 e meados de 1932, de máximo a mínimo, o índice Dow Jones desvalorizou 90%. Contudo, naquele mesmo período, em que a contração da actividade económica foi acompanhada de deflação, o PIB nominal da economia norte-americana, apesar de ter afundado fortemente, não contraiu mais do que 45%. Isto mostra como os mercados funcionam. São como pêndulos, que oscilam de um extremo ao outro, buscando equilíbrios, muito embora apenas pontualmente estejam em equilíbrio. Ora, é precisamente nos momentos de maior desequilíbrio que está o poder sinalizador dos mercados.

A relativa indiferença das bolsas de valores nos EUA, face à previsível evolução macroeconómica, salvo uma recuperação em V, tem provavelmente muito a ver com a intervenção do banco central. A Reserva Federal parece disponível para comprar tudo o que mexe. O seu balanço deverá duplicar até ao final do próximo ano, passando a representar cerca de 40% do PIB norte-americano. As rotativas, ou o seu equivalente do século XXI, vão funcionar. Nos EUA, só faltam mesmo as taxas de juro negativas, às quais o FED vai resistindo, muito embora as cotações dos mercados de futuros já as estejam a antecipar.

Na Europa a situação não é muito diferente, apesar do impacto do BCE sobre os mercados europeus estar a ser até agora bem mais modesto do que o do FED nos EUA. O BCE prepara-se para aumentar o seu mais recente programa de aquisição de activos (PEPP), que ao ritmo actual esgotar-se-á no Outono, de 750 mil milhões de euros para (pelo menos) 1.000 milhões, além de ter tornado mais negativas as taxas de juro nos empréstimos de médio prazo oferecidos aos bancos. É também previsível que o BCE venha a adquirir a dívida emitida pela Comissão Europeia no âmbito do fundo de recuperação (assumindo que este avança mesmo, o que é ainda incerto).

O financiamento monetário dos Estados, independentemente das subtilezas formais, não surpreende. Em épocas de crise profunda, ou de conflito armado, foi frequentemente utilizado. Também a repressão financeira, através de taxas de juro reais negativas, não é novidade. Já as taxas de juro nominalmente negativas, que representam o novo normal na Europa, essas sim, tirando o Japão, constituem paradigma novel. Trata-se de uma experiência monetária que, do ponto de vista dos devedores, é muito apelativa, mas que, do ponto de vista da oferta de crédito, pode produzir efeitos contrários aos pretendidos, reduzindo, em vez de aumentar, a oferta de crédito (sobre isto, ler “The Reversal Interest Rate”, NBER 2018).

A utilização de taxas de juro negativas na promoção de empréstimos, como por exemplo faz o BCE no âmbito do TLTRO, levando a que na prática seja o credor a pagar ao devedor para que este se endivide (!), cria um efeito de subsidiação perverso. Primeiro, corresponde à subsidiação indevida dos bancos comerciais que tomam fundos abaixo da taxa de depósito do banco central. E, depois, surge a pressão política para que suceda o mesmo em relação ao sector não financeiro por parte dos bancos comerciais. A situação é simples. Se um banco central paga a um banco comercial para que este tome fundos, em teoria, bastará depois ao banco comercial, a fim de lucrar com isso, emprestar esse mesmo dinheiro ao seu cliente/devedor final a uma taxa de juro menos negativa do que a original (assumindo que o empréstimo não entra em incumprimento!).

No exercício anterior, mesmo que o banco comercial pagasse de facto ao devedor final (o equivalente a uma taxa de juro negativa), em teoria, o banco comercial lucraria com a operação caso recebesse do banco central um montante superior (igual à taxa de juro mais negativa). Mas, neste ciclo tortuoso, a taxa de juro perderia o efeito sinalizador – que reside na aferição do risco de crédito do devedor. Seria um mundo sem chão, em que todos os riscos poderiam vencer juros negativos, constituindo, portanto, não-riscos, o que seria absurdo. A situação seria tanto mais absurda na medida em que o prémio (repito, prémio) de risco tem de atender ao retorno financeiro sobre o capital, mas também ao retorno do capital propriamente dito.

A redução das taxas de juro para zero, ou para valores negativos, tem também como consequência a inflação dos activos financeiros e, paradoxalmente, o agravamento da desigualdade entre os detentores e não-detentores dos mesmos. Se a taxa de desconto tende para zero, tudo o resto constante, poderá argumentar-se que as cotações tenderão para infinito. Mas, a exemplo dos juros negativos, que tornam riscos em não-riscos, a consideração de valores potencialmente infinitos para as cotações dos títulos leva-nos para uma dimensão também ela artificial e desligada da realidade. Mais uma vez, o efeito vicioso da política monetária.

A intervenção monetária atingiu níveis acomodatícios nunca vistos. Os célebres conselhos de Walter Bagehot (vide “Lombard Street”), que durante muito tempo orientaram os bancos centrais, e que preconizavam a cedência ilimitada de liquidez a entidades financeiras solventes, mas sempre a taxas de juro onerosas, foram abandonados. Em seu lugar, temos hoje a cedência de liquidez ilimitada, cada vez mais transversal – entre sector financeiro e não financeiro, entre bons e maus riscos –, e a taxas de juro cada vez mais baixas senão mesmo negativas. As autoridades monetárias devem funcionar como financiadores de último recurso, porém, não deveriam constituir-se como artífices de economias zombie nem de mercados distorcidos.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

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