Será que o vírus vai ver a bola?

Ninguém o quer no estádio, caro leitor. E nem no café da esquina, a ver os jogos com os amigos. Querem-no confinado ao sofá de casa, a ver a bola pela TV, a pagar às operadoras que suportam os clubes.

Portugal está a desconfinar. Depois de meses fechados em casa, os portugueses estão a recomeçar a ir à rua. Saem porque o vírus, apesar de estar à espreita, já não assusta tanto quanto os efeitos que tem na vida de cada um de nós. E ainda bem que saem, para ajudar o café da esquina, a mercearia do bairro, o restaurante da moda e o teatro da cidade. Só não podem ir à bola, mas a bola vai rolar.

Neste processo de desconfinamento, nem tudo o que se permitiu abrir portas teve um motivo válido. Basta lembrar que, na primeira fase, por exemplo, passou a ser possível sair à rua para ir comprar um automóvel. Sim, um carro novo. Em plena pandemia, com mais de um milhão de portugueses em lay-off, com salários cortados, outros no desemprego e uma perspetiva turva sobre o futuro, era mesmo isso que o comum português queria fazer.

Muito do que abriu portas acabou por ser por razões financeiras. É preciso manter dinheiro a rolar na economia, por isso foi preciso pesar a saúde e os euros na hora de decidir. Na segunda vaga, das três, aconteceu o mesmo. E nesta última, praticamente quase tudo recebeu luz verde para voltar ao normal ou ao novo normal: máscaras, viseiras e gel, muito gel para matar o bicho.

Viu-se isso nos aviões, que podem voar lotados, como se não houvesse vírus algum, mas também nos cinemas e teatros. Inicialmente teriam capacidade limitada, filas vazias para criar o distanciamento social, entre outros. Mas rapidamente se evoluiu para o plano financeiramente racional: pode ocupar-se todas as filas, mantendo uma cadeira de espaço entre cada um dos que pagaram bilhete.

Muito evoluíram as regras, para gáudio dos respetivos setores. É a salvação da morte certa. Mas o mesmo não aconteceu com outros espetáculos, como aquele que mais paixões desperta: o futebol. Depois da ameaça de terminar o campeonato com a classificação de meados de março, a liga portuguesa avançou com um plano de retoma. A bola volta, mas os adeptos não.

Em alguns países, a competição acabou mais cedo. Noutros voltou, também sem público. Mas porquê? Então, se se pode ir ao cinema ou ao teatro em salas praticamente cheias (e, provavelmente, com o ar condicionado a fazer circular partículas pelo ar), porque é que não se pode ir para uma qualquer bancada de um estádio, ao ar livre, apoiar a equipa preferida? Não é muito difícil garantir o distanciamento social… Será que o vírus vai ver a bola?

Se os adeptos não podem ir ao estádio para verem a bola a rolar, então porquê sequer retomar o campeonato? São os euros. Um adepto no estádio paga bilhete, come uma bifana e até compra o cachecol para celebrar os golos. Mas isso não chega. O futebol português não vive daqueles que vivem os seus clubes. Vive ligado a máquinas de fazer notas. Sobrevive com ventiladores do dinheiro, das operadoras de telecomunicações que há alguns anos fizeram contratos milionários para, entre si, garantirem os direitos de transmissão televisiva.

Ninguém o quer no estádio, caro leitor. E nem no café da esquina, a ver os jogos com os amigos, porque não pode haver ajuntamentos por risco de aumento da transmissão do vírus. Querem-no confinado, novamente, ao sofá de casa, com o comando na mão para subscrever canais que fazem a transmissão em direto da enxurrada de jogos que todos os dias vão preencher horário nesses canais e os comentários aos resultados em todos os outros.

Querem-no refastelado a olhar para o ecrã para venderem a publicidade que justifica o racional da compra dos direitos. É que permite, depois, passar o cheque aos clubes, ávidos das rendas mensais que estão habituados a receber. É quase chapa ganha, chapa gasta. Dois meses sem futebol provam isso mesmo. Senão veja-se os sucessivos alertas que os chamados “grandes” têm feito. Já houve empréstimos para pagar salários, até despedidas antecipadas aos craques que terão de ser convertidos em milhões numa época de transferências que se prevê menos milionária.

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