Filipe Santos Costa assina a nova newsletter de fim de semana do ECO. "Novo normal", a análise de um tema destes dias, a leitura dos jornais de hoje e o que fica das opiniões televisivas de ontem.
Guerras pré-eleitorais já houve muitas — mas a de Donald Trump é inédita: não se trava fora do país, mas dentro. Depois de elogiar déspotas um pouco por todo o mundo, Trump decidiu comportar-se como um deles – mas a resposta dos militares não foi a que esperava. A cinco meses das eleições, o presidente dos EUA já só pensa em inflamar a sua base de apoio, mas essa pode estar a fugir-lhe.
1. A “guerra” que se tornou mesmo guerra, com tropa e tudo
Vem em qualquer livro de política americana para totós: nada como uma guerra para vencer uma eleição que se aproxima. Serve para unir o eleitorado em torno do homem que personifica a nação (a ciência política tem um conceito para isso: “rally ‘round the flag” é um efeito comum em momentos de crise – virar-se para o líder, quem quer que ele seja). Também serve para distrair o eleitorado de questões menos lisonjeiras para o “commander in chief” (também há um nome para isso, “wag the dog”). O truque costuma resultar, e é daltónico – tanto vale para presidentes republicanos como democratas.
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O que não vem nos livros é declarar essa guerra contra o próprio país. Essa é provavelmente a maior excentricidade das muitas com que Donald Trump pontuou os seus três anos e meio de poder.
James Mattis, o general que foi o primeiro responsável do Pentágono na era Trump (e se demitiu em 2018), desfez esta semana o caráter do inquilino da Casa Branca, numa declaração sem eufemismos em que o apontou como uma ameaça à Constituição, e deixou a frase que resume o que importa saber sobre a estratégia desta administração: “Donald Trump é o primeiro presidente, nos anos que levo de vida, que não tenta unir os americanos – e nem sequer finge que tenta.”
Esta semana, Trump deu o passo que faltava nesta escalada do conflito com uma parte do seu país, ameaçando por os militares nas ruas, mesmo contra a vontade dos governadores. A violência, a agressividade, a divisão e o tumulto não são novidade na presidência Trump. Estão na sua base. Só isso explica que, depois de uma vitória que partiu o país, Trump tenha inaugurado o seu mandato com um discurso sombrio sobre a “carnificina americana”. Estava a falar de uma realidade que, à época, só existia na sua cabeça e de fanáticos de teorias de conspiração e realidades alternativas. Tornou-se um discurso premonitório: quem diria que a “carnificina americana” da tomada de posse seria, afinal, o retrato da realidade norte-americana no final desse mandato?
2. O travão dos militares
A aliança com o aparelho militar – um dos rudimentos de qualquer líder autoritário wannabe – podia ter levado a uma escalada do conflito interno esta semana, mas os militares impediram que se passasse essa linha vermelha. O presidente foi obrigado a recuar.
A resistência de setores das forças armadas aos piores impulsos de Trump foi um dos acontecimentos mais notáveis deste processo, e um de que o presidente dos EUA não estaria à espera. Ao ponto de Mark Esper, o secretário da Defesa, lhe ter puxado o tapete em direto, declarando que não havia razões para cumprir a ameaça presidencial de declarar o estado de insurreição. E o chefe do Estado-Maior General, Mark Milley, emitiu um comunicado lembrando os princípios constitucionais de igualdade, de liberdade de expressão e de manifestação.
Relatos dos bastidores da Casa Branca asseguram que os conselheiros de Trump passaram os últimos dois dias a por-lhe gelo nos pulsos, para evitar que o secretário da Defesa fosse despedido.
O único vestígio de insurreição veio de vozes respeitadas do establishment militar, como James Mattis, antecessor de Esper, ou Mike Mullen, antigo chefe do Estado-Maior, que pôs em causa a “sanidade das ordens emitidas pelo commander in chief” e lembrou o básico: “Os nossos compatriotas não são o inimigo”. Ontem, John Kelly, outro general que foi do círculo próximo de Trump, como seu chefe de gabinete na Casa Branca, afirmou na CNN um sonoro “concordo” em relação às acusações de Mattis. Não é comum nos EUA que militares desta craveira assumam discursos tão críticos em relação a um presidente em funções. Kelly, ao falar de Trump, ainda pôs o enfoque nas questões de “caráter” e “ética”.
As forças armadas, que em regimes autocráticos e em democracias frágeis se comportam como o braço-armado, de facto, de líderes musculados, resistiram a essa tentação nos EUA, mostrando a diferença que faz uma democracia madura e estabilizada, com separação de poderes e mecanismos eficientes de pesos e contrapesos. Por muito que Trump esteja a enfraquecer alguns desses mecanismos, a tradição apolítica das forças armadas prevaleceu. John Kelly sublinhou isso, ontem: “Precisamos de nos afastar da política.””Que efeito terá o desafio dos generais?”, pergunta [hoje] o Jorge Almeida Fernandes.
3. A photo op que define um final de mandato
Curiosamente, a força militar entrou em cena no momento paradigmático do braço-de-ferro entre Trump e parte do país. Um ponto que pode ser definidor deste final de primeiro mandato. Polícia militar (que não é o mesmo que as tropas regulares que Trump queria chamar), serviços secretos e várias polícias obrigaram a dispersar uma multidão de manifestantes pacíficos que se concentravam perto da Casa Branca na segunda-feira. Apesar de não se terem registado desacatos nessa manifestação, e da mesma acontecer bem antes do recolher obrigatório, centenas de civis que estavam em Lafayette Square foram corridos à bastonada e com recurso a cavalos, granadas de fumo e gás lacrimogéneo (numa versão) ou gás pimenta (noutra versão – e ambas têm as mesmas consequências).
A operação foi dirigida pelo Procurador-Geral William Barr (o equivalente a ministro da Justiça), e teve como objetivo permitir a Trump uma caminhada triunfal até à histórica igreja episcopal de São João, para uma fotografia. Trump não entrou nem rezou na igreja onde outros presidentes rezaram (diz que Trump não é dado a rezas); limitou-se a posar com uma Bíblia. “É a sua Bíblia?”, perguntou um jornalista; “É uma Bíblia”, respondeu Trump – para uma foto, “bacalhau basta”.
Foi um ato de narcisismo, fanfarronice, provocação e oportunismo. Mas também uma demonstração de força, focada no binómio “LEI & ORDEM!” (o tweet mais repetido por Trump, em maiúsculas e com ponto de exclamação). É uma mensagem poderosa – sobretudo para quem assiste a uma aparente luta entre o caos e a ordem e teme que a zaragata lhe chegue à porta. Como notava Anne Applebaum, esta semana, na Atlantic, há muita gente que não gosta de discórdia, detesta qualquer tipo de complexidade, e só quer que o caos seja dominado. Mesmo que à força. Não falta quem tenha essa predisposição autoritária – e Trump tornou-se no “porta-voz desses americanos autoritários” que querem ordem, mesmo que isso se faça acima da lei. Eram eles a sua audiência durante a caminhada de Lafayette Square. Mas não só.
4. Evangélicos entre o aplauso e o distanciamento
Trump nunca deu um passo para tentar alargar a base de apoio com que foi eleito, e sempre se limitou a alimentar essa base. Agora, dá tudo por tudo para ativar esse eleitorado mais fiel, branco, ultra-conservador e evangélico. Primeiro, ao posar de Bíblia na mão, como um passaporte, como quem diz “eu sou parte da vossa tribo”. No dia seguinte, fez-se fotografar em frente à estátua de João Paulo II, para piscar o olho também aos católicos.
A reação de parte desse eleitorado foi entusiasta. Vale a pena ler este texto do Guardian, em que uma família evangélica, de lágrimas nos olhos, compara a caminhada com cheiro a gás no ar à cena bíblica das muralhas de Jericó, e imagina Trump envergando a “armadura de Deus” (Efésios, 6:10-19). É toda uma outra realidade, para a qual é irrelevante que essa passagem bíblica avise que a luta de Deus “não é contra seres humanos”…
Vários líderes religiosos criticaram o oportunismo com que Trump transformou um lugar sagrado em campo de batalha eleitoral (Não acredito no que os meus olhos viram”, disse a responsável pela igreja episcopal de Washington), mas boa parte dos líderes evangélicos louvaram a firmeza de Trump. Mas também se ouviram críticas, como as do fundador da Christian Coalition: “Isso não se faz, Senhor Presidente”. E mais algumas. E os últimos estudos eleitorais não trazem boas notícias para Trump. Em março, perante a ameaça da Covid-19, os seus níveis de aprovação junto dos evangélicos brancos era de 80%; este mês, já com os conflitos raciais a dominar as ruas, esse apoio caiu para 62%. Noutros segmentos religiosos, os níveis estão ainda mais baixos.
Ora, este é o eleitorado no qual Trump não pode perder nem um voto. Mas a aposta do Presidente é que, em novembro, tendo de escolher entre ele e Biden, estes eleitores não hesitarão em cair massivamente para o seu lado (aconteceu o mesmo há quatro anos).
5. Tendências a mudar; sondagens a mexer
Por outro lado, Trump aposta que, na trincheira oposta, Biden terá muito mais dificuldade em polarizar apoios – por várias razões (desde logo a moderação do ex-vice-presidente, que não atrai as franjas mais revoltadas da sociedade). E o facto é que boa parte dos que se manifestam agora contra Trump não acreditam na possibilidade de mudanças pelo voto – não é por acaso que a democrata Stacey Abrams escreveu um texto sobre essa descrença. A campanha de Trump acredita que será mais difícil aos democratas levar estas pessoas a votar Biden do que mobilizar os que já votaram no atual presidente em 2016 – e boa parte da campanha republicana, como há 4 anos, será para desmobilizar o eleitorado oponente.
A nível nacional, os índices de aprovação do presidente americano estão nos 42%, com 53% a rejeitar a sua conduta. Outro estudo, com o confronto direto Trump/Biden (a média das últimas sondagens feita pela CNN), dá resultados quase iguais: 42% para o atual presidente, 51% para o seu adversário.
Mas há opiniões a mudar. Um estudo de opinião divulgado esta semana dá conta da evolução face ao racismo: 76% dos inquiridos (incluindo 71% de brancos) consideram o racismo e a discriminação “um grande problema”. A maioria (tal como nesta sondagem) acredita que a política trata os negros de forma mais injusta. Noutra sondagem, do Washington Post, reforça a perceção de que alguma coisa está a mudar. Questionados sobre se esta violência policial racista não passa de incidentes isolados ou é parte de um problema maior, 74% escolheu a segunda opção; em dezembro de 2014, depois do caso Michael Brown, em Ferguson, numa sondagem semelhante, só 43% admitiam a existência de um “problema maior”.
A forma como Trump iludiu a questão do racismo, desviando o debate para as pilhagens e a sua rotulagem como “o vosso presidente da lei e da ordem”, teve consequências. A nível nacional, os índices de aprovação do presidente americano estão nos 42%, com 53% a rejeitar a sua conduta. Outro estudo, com o confronto direto Trump/Biden (a média das últimas sondagens feita pela CNN), dá resultados quase iguais: 42% para o atual presidente, 51% para o seu adversário. Porém, a questão para Trump foi sempre outra: garantir que a minoria que o apoia vota mais do que a maioria que não o suporta. Até porque, como nota o Público de hoje, Trump até pode ter menos votos do que em 2016, e ainda assim continuar presidente.
Outro sinal da história a mudar: ontem, a NFL, entidade responsável pela liga de futebol americano, assumiu com firmeza o apoio aos jogadores que ajoelham durante o hino nacional, em protesto contra a violencia policial e racial. Trump proclama que isso é desrespeitar a bandeira, e com essa pressão conseguiu há quatro anos vergar a NFL e afastar Colin Kaepernick dos relvados (lembra-se?). Agora, não.
6. As crises gémeas, a “recessão mais curta” e o sorriso de Wall Street
Mais de 108 mil pessoas já morreram nos EUA vítimas da Covid-19 – é acima de um quarto da mortalidade mundial, mas os indicadores vão caindo aos poucos (ontem, mais 922 mortos). Os níveis de desemprego batem tudo o que se viu desde a Grande Depressão – mas os dados desta semana, pela primeira vez, indicam uma redução do número de desempregados, ao contrário do que era previsto. Em maio, foram criados 2,5 milhões de postos de trabalho, conforme a atividade económica foi sendo retomada.
Trump já fala na “maior recuperação” de sempre. Ontem, Mark Zandi, economista-chefe da Moody’s, não escondia a surpresa pelos dados do emprego, e previa a “recessão mais curta da história”. A recuperação pode ser em V, mas até lá há esta certeza: a comunidade mais flagelada pelo desemprego nos EUA é a afro-americana. Os dados mostram que são sempre os negros os mais afetados pelas crises, tal como são os mais afetados, de forma muito desproporcional, pela Covid-19.
Num clima de ameaça sanitária, incerteza económica e tumulto social… Wall Street faz a festa. Há qualquer coisa de estranho quando, no meio de uma pandemia global, indíces de desemprego esmagadores e revolta nas ruas, a bolsa norte-americana regista a maior recuperação em 50 dias consecutivos desde 1933. Entre o trambolhão de 23 de março e quarta-feira passada, passaram 50 dias. Neste período, o índice da Bolsa de Nova Iorque registou uma subida de 42 pontos – “a melhor recuperação desde 1933”, concluiu o Washington Post.
Um dia particularmente bom para a bolsa? A terça-feira, logo a seguir aos tumultos de Lafayette Square, em Washigton. Os investidores estão confiantes de que esta será mesmo uma crise curta, e exultantes com o dinheiro que os governos (em particular o americano) estão a despejar na economia. Há dias, a Economist fazia capa com isto: a “perigosa rutura” entre os mercados e a economia real.
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