O Sonho das Estátuas

Conduzidos pela filosofia da Justiça Social, este súbito ódio aos símbolos do passado representa a tentativa de encontrar na História o elemento da pureza primordial associado à Natureza Humana.

Destruir estátuas é o equivalente a um linchamento público. Derrubar estátuas é o mesmo que queimar vivo o indivíduo ausente. Arrancar estátuas é como incinerar livros porque não se gosta das ideias escritas. Na grande celebração da política nas ruas, o espectáculo da destruição é um exercício tribal – vivem os nossos, morrem os outros. Não existe consenso, ordem, moderação, a lógica significa uma explosão de raiva e de ódio que termina no “cancelamento” do outro – porque o outro é diferente, fala de outro modo, age de outra forma, pensa o que a multidão odeia. As multidões não fazem justiça porque só sabem o sentido da vingança.

As estátuas existem no espaço público. A apropriação do espaço público por um movimento ou ideologia é um exercício autoritário que implica a exclusão de todos os outros. Não é um gesto político pacífico, mas a ocupação pela força física de um território que é de todos, uma memória que é de todos, uma identidade que é de todos. A apropriação do espaço público por um movimento é um gesto de extermínio do debate político.

Em vez da discussão de ideias, assiste-se à imposição acrítica da ortodoxia, qualquer ortodoxia, uma solidariedade eufórica que domina a multidão e que transforma uma infinidade de átomos desconhecidos numa massa homogénea de irmãos. A violência política tem agora condições para mover os oceanos e apagar a via láctea. E para abrir uma cratera do tamanho do Mundo.

Seja na América, seja na Inglaterra, seja na Bélgica, seja em Lisboa, a destruição das estátuas é um esforço político revisionista que pretende impor uma leitura única, exclusiva, definitiva, da complexidade da História. Usando o argumento do “racismo institucional”, do “racismo estrutural”, a História é dividida entre “vítimas” e “criminosos”, uma visão infantil e simplista em que todos os brancos são opressores e todos os negros oprimidos. O esforço é encontrar no fluxo divergente de todas as correntes da História, a lógica derradeira e última que explica a exploração no Mundo e promete a Utopia final da justiça redentora. Para alcançar a justiça basta então destruir as instituições que existem e os arranjos políticos correntes. Como diria Voltaire, para que se faça uma nova e boa lei é necessário queimar todas as velhas e más leis. O Progresso parece ser assim a destruição caótica daquilo que está.

O extermínio das estátuas aponta ainda num outro sentido político. O sentido que se evapora da ideia de que a geração actual pode mudar o Passado como se os valores contemporâneos fossem uma constante determinista que atravessa o tempo e as culturas. A arrogância intelectual e política é um híbrido entre a ignorância e a ilusão, pois parece esquecer que o Passado é precisamente aquilo que passou, que já não existe, um modo de vida e de estar que morreu. O que continua entre nós são as consequências das decisões do Passado, e é neste contexto que a complexidade da História deve ser discutida, debatida, investigada. Pois é precisamente a possibilidade de entender a História nesta perspectiva crítica e aberta que a ocupação e a destruição do espaço público retiram ao exercício democrático.

Conduzidos pela filosofia da Justiça Social, intoxicados por argumentos moralistas e pós-políticos, este súbito ódio aos símbolos do Passado representa a tentativa de encontrar na História o elemento da pureza primordial associado à Natureza Humana. O Homem existia num Estado de Natureza perfeito, um reino onde prevalecia a harmonia, a concórdia, a abundância, a paz, a felicidade. Mas este paraíso secular foi destruído pelo Imperialismo, pelo Colonialismo, pela Supremacia Branca, pelo Extermínio Indígena, pela Opressão dos Negros, pela Exploração dos Recursos do Planeta, pela Ganância Capitalista.

Nesta “sequência infame” estão todos os males do Mundo. A nova Geração de Activistas pretende recuperar a pureza original e primeira. Mas a História é incompatível com a pureza. Em todos os lugares, em todos os tempos, não existe grandeza sem baixeza, não se encontra bondade sem maldade, altruísmo sem egoísmo, visão sem ambição, riqueza sem pobreza, justiça sem injustiça, verdade sem mentira, vida sem morte. Forçar a pureza é um sonho megalómano que destruiu todas as Torres de Babel.

Há qualquer coisa de George Orwell neste delírio contemporâneo. Os servidores da causa que ocupam os seus dias na revisão minuciosa dos jornais e dos livros do Passado, precisamente para que o Passado esteja alinhado com a visão do Presente. A questão não é um mero acidente da sensibilidade, mas o projecto grandioso de construir o Futuro sobre as ruínas da censura, da mentira e da dignidade humanas.

Falta a questão da Liberdade. Estátuas destruídas, livros proibidos, filmes arquivados, programas de TV cancelados, músicas em silêncio, palavras banidas, pensamentos proscritos, ideias canceladas. Eu não quero viver num Mundo marcado pelo medo da dissidência em que a ortodoxia da consciência tranquila me imponha o que leio, o que digo, o que penso. Don Giovanni matou o Comendador. O mesmo Don Giovanni convidou a estátua do Comendador para jantar. No dia e na hora marcadas, o Comendador desceu das alturas e arrastou Don Giovanni para o Inferno. A multidão nas ruas é o prenúncio de que o Céu tem um limite e o Inferno é a última fronteira.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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