A União do Mercado de Capitais
As empresas em Portugal teriam grande vantagem no estabelecimento de uma união europeia de mercados de capitais, porque a distância entre empresas e investidores por essa Europa fora encurtar-se-ia-
Na semana passada foi publicado um relatório de recomendações de política pública dirigidas ao sector financeiro, sob o título de “A New Vision for Europe’s Capital Markets”, cujo objectivo é relançar a discussão sobre a união do mercado de capitais na União Europeia. O relatório, solicitado pela Comissão Europeia a especialistas da área financeira, é bem-vindo e contém ideias meritórias. Mas, ao mesmo tempo, a sua elaboração é reveladora de que a união do mercado de capitais, tão discutida em Bruxelas desde 2015, não passou ainda do plano das intenções. Perderam-se cinco anos e, com isso, desperdiçaram-se oportunidades de crescimento económico e de inclusão financeira na Europa.
Segundo dados da Association for Financial Markets in Europe (AFME, “Capital Markets Union, Key Performance Indicators, 2nd Edition”), em 2018 apenas 12% das necessidades totais de financiamento das empresas não financeiras na União Europeia foram suprimidas através dos mercados de capitais, nomeadamente através da emissão de títulos accionistas e obrigacionistas. Em Portugal, a proporção foi ainda mais baixa – somente 7% do total. Ao invés, no outro lado do Atlântico, o papel dos mercados de capitais no financiamento das empresas norte-americanas foi muito superior: uma quota-parte de 27%.
A reduzida importância dos mercados de capitais no financiamento das economias europeias, por oposição à norte-americana, não é de agora e, apesar de tudo, nos últimos anos o diferencial face à América até tem diminuído (porque nos EUA o peso relativo dos mercados de capitais no financiamento empresarial diminuiu mais do que proporcionalmente). Todavia, o que mais impressiona na Europa é a incapacidade de os mercados de capitais descolarem da baixíssima fasquia em que se encontram há já muitos anos. De acordo com a AFME, a sua importância no financiamento das empresas não financeiras está estagnada desde 2013 e, com o Brexit, os números vão piorar.
Em Portugal a situação é especialmente difícil.
- Primeiro, há uma elevada dependência do financiamento bancário por parte das empresas, num contexto nacional de elevada concentração bancária e redução global do stock de crédito.
- Segundo, há falta de rentabilidade sobre os capitais próprios, que em Portugal entre 2013 e 2018 foi em média de 6,5%, face ao custo de oportunidade do capital próprio, que em 2018 era de 8% na União Europeia.
- Terceiro, os activos financeiros detidos pelos agregados familiares em Portugal são parcos, representando apenas 50% do PIB em 2018 face aos 113% de então na média da União Europeia.
O relatório dos especialistas consultados pela Comissão Europeia aponta vários caminhos. Mas destacaria um em particular: a harmonização dos regimes de insolvência empresarial na União Europeia. No caso de Portugal, onde os processos de insolvência (de A a Z, ou seja, até ao chamado “visto em correição”) demoram em média mais de cinco anos (conforme estatísticas da Direcção-Geral da Política de Justiça), dificultando assim a recuperação de crédito, tratar-se-ia de uma oportunidade de ouro para iniciarmos a reforma de que tanto necessitamos. Desta forma, reduzir-se-iam custos de contexto e riscos de financiamento transfronteiriço.
A harmonização dos regimes de insolvência na Europa contribuiria para carrear maior financiamento às economias que hoje pior figuram em termos de eficiência administrativa e processual. Permitiria uniformizar a ordem de prioridade de recuperação de crédito dos vários tipos de credores, eliminando assimetrias e custos de informação que resultam da existência de 27 diferentes regimes na União Europeia. A contabilização de imparidades deixaria de estar tão sujeita a especificidades nacionais, nivelando as regras bancárias e facilitando a reciclagem de capital não produtivo. Também os direitos dos investidores poderiam ser alinhados, facilitando o seu exercício, através de ferramentas digitais, independentemente da domiciliação dos emitentes.
O relatório faz referência a outras medidas, embora nem sempre de forma certeira. Por exemplo, sobre os requisitos de capital da banca, vide Basileia III, o relatório propõe acabar com o ponderador de risco de 400%, aplicável aos investimentos realizados pelos bancos em acções não cotadas (“speculative unlisted equity”), para cálculo de fundos próprios. Mas, em termos práticos, a medida teria impacto reduzido.
Pelo contrário, a dinamização dos chamados ELTIF’s (“European Long Term Investment Funds”), que foram introduzidos em Portugal através do DL77/2017 e aos quais seria aplicável o ponderador de 100% previsto em Basileia III, poderia fazer a diferença para melhor. O mesmo ponderador talvez pudesse também ser aplicado a empresas saídas de processos de revitalização (face aos actuais 150%).
O distanciamento das empresas portuguesas face aos mercados de capitais é uma grande limitação. Em parte, esse distanciamento tem a ver com a fragmentação dos mercados, que leva à reduzida atractividade do mercado nacional, tornando-o essencialmente paroquial, quer para investidores quer para emitentes. A bolsa portuguesa fica assim paradoxalmente limitada às empresas de maior dimensão, aquelas que apesar de tudo teriam a capacidade de ir lá fora, deixando de ser alternativa para as mais pequenas, que tendem a ficar presas cá dentro. A regulamentação, que é densa, e os custos de “compliance” e de governo societário, que são cada vez maiores, também não encorajam.
As empresas em Portugal teriam grande vantagem no estabelecimento de uma união de mercados de capitais na União Europeia, porque a distância entre empresas e investidores por essa Europa fora encurtar-se-ia.
Nos próximos anos, Portugal terá de diversificar as suas fontes de financiamento. Ao mesmo tempo, haverá muita dívida empresarial que acabará transformada em capital próprio. No caso particular das PME, o acesso aos mercados de capitais não tem de ser uma miragem. Pode ser facilitado através de mercados mais profundos, novos formatos de colocação e dispersão em bolsa, ou de veículos colectivos de investimento que promovam o acesso indirecto aos investidores, preferencialmente, em toda a Europa. As empresas portuguesas não deveriam confinar-se ao pequeno rectângulo.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
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