Filipe Santos Costa assina a nova newsletter de fim de semana do ECO. "Novo normal", a análise de um tema destes dias, a leitura dos jornais de hoje e o que fica das opiniões televisivas de ontem.
Um dos aspetos mais louvados no caso português do combate à pandemia é a capacidade de testagem que o país conseguiu assegurar, depois de um arranque titubeante. Dados desta semana confirmam Portugal entre os países da UE que mais testes realizaram – com quase 94 mil testes por milhão de habitantes, está atrás apenas de seis países: Malta, Luxemburgo, Lituânia, Dinamarca, Chipre e Espanha.
Na UE, entre os que têm população semelhante à nossa, Portugal é claramente o que mais testa. De todos os países com população entre 7 e 12 milhões de habitantes, só um testa mais do que Portugal, os Emiratos Árabes Unidos. Estes são os dados do site Worldometers; outras plataformas, a partir de outras fontes, dão resultados diferentes, mas Portugal surge sempre bem colocado. No Our World in Data, ligado à Universidade de Oxford, poucos têm um desempenho tão bom no número de testes.
Neste gráfico, é possível comparar a evolução dos testes em Portugal com a evolução noutros países europeus com população semelhante (Holanda e Suécia), com bom desempenho a travar a doença (Grécia) e com péssimo desempenho (Itália e Espanha), e ainda com casos de referência mundial para o bem (Coreia do Sul) e para o mal (EUA).
Portugal está a aproximar-se de um milhão de testes, em resultado de uma decisão política (“testar, testar, testar”) e do empenho de laboratórios públicos e privados, mas também de centros de investigação universitários e de empresas.
Um caso exemplar. Para o bem e para o mal
Em março, o Instituto de Medicina Molecular, dirigido por Maria Manuel Mota, criou um teste português. Depois, num dos momentos decisivos para a evolução da pandemia em Portugal – quando soou o alarme nos lares de idosos -, uma parceria entre universidades e empresas respondeu a outro problema: o material que rareava para realizar esses testes em larga escala a utentes e funcionários dos lares. E, quando chegou a hora de reabrir creches, o mesmo consórcio garantiu mais uns milhares de testes.
Trata-se do consórcio que juntou investigadores e meios do Algarve Biomedical Center (ABC) da Universidade do Algarve e do Instituto Superior Técnico (IST) ao know-how industrial das empresas Hidrofer e Logoplaste.
É um caso de estudo de como o melhor do conhecimento científico português se mobilizou na resposta à pandemia, e se juntou a duas empresas state of the art, com nome feito internacionalmente, para produzir em Portugal aquilo que Portugal não produzia – e o mercado não estava a conseguir fornecer.
Mas também é um caso de estudo por outra razão: os cerca de 50 mil kits de despistagem da Covid-19 que foram disponibilizados por este consórcio entre abril e maio (e com custos muito inferiores aos de mercado) podiam ter sido bastantes mais – e só não foram devido à intervenção do Infarmed, que travou esse processo, levantando dúvidas e exigências que deixaram indignada parte da comunidade científica portuguesa. E isto, ao mesmo tempo que material importado circulava em Portugal com um grau de escrutínio muito inferior.
“Reações estranhas” à inovação
Esta semana, o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, assumiu a existência de um problema com o Infarmed, na entrevista que lhe fiz para o podcast Política com Palavra. “Quando um processo é novo, verdadeiramente inovador, temos de reconhecer que não há competências existentes. Surgiram nesta crise um conjunto de novas situações, sobretudo ao nível dos equipamentos de proteção individual e dos dispositivos médicos, que nunca tinham surgido em Portugal. O próprio Infarmed não estava preparado para este tipo de situações. E tem uma reação à priori de falta de conhecimento”, reconheceu Manuel Heitor.
“Como em qualquer processo inovador, surgem reações estranhas”, declarou o governante que tutela a ciência e tecnologia nacionais. “Só quem não percebe o que é inovar é que não percebe a resistência institucional, e das próprias pessoas que a fazem.” E apontou uma saída: a criação de uma “entidade notificadora da capacidade em dispositivos biomédicos”, retirando essa competência ao Infarmed.
Essa é a regra europeia, nota Manuel Heitor, e só nunca foi seguida em Portugal porque a produção nacional nesta área nunca o tinha justificado. “A recomendação europeia é muito clara: deve haver uma separação de poderes entre quem fiscaliza o mercado e quem notifica a capacidade técnica para produzir equipamentos.” Durante a crise isso já aconteceu com o CITEVE – o Centro Tecnológico do Têxtil e Vestuário, que passou a fazer a certificação de máscaras e equipamentos de proteção individual. Tem sido um sucesso. A produção destes artigos explodiu em Portugal, tanto para consumo interno como para exportação, e o Executivo esperava que o mesmo acontecesse com os dispositivos biomédicos… Mas ainda não.
A 22 de maio, o Infarmed proibiu a distribuição e utilização do kit português. A notícia foi revelada num longo e detalhado texto do Observador. A partir desse momento, o consórcio deixou de poder continuar a fornecer os kits made in Portugal. E só duas semanas depois o Infarmed recuou na proibição, permitindo a distribuição do kit, com algumas condições, como pode ler aqui.
Apesar do recuo do Infarmed, as questões colocadas e as dúvidas levantadas – e que persistem – deixaram marcas. O episódio foi grave. As declarações de Manuel Heitor, esta semana, embora cautelosas, são o reflexo público desse mal-estar.
As zaragatoas, os raios gama, os tubos, o consórcio…
O kit para o teste consiste em duas zaragatoas secas, para recolha de amostras biológicas pelo nariz e pela garganta, e um tubo com tampa, onde as zaragatoas são depois fechadas, para análise. O tubo traz 2ml de líquido, o chamado “meio de transporte viral”, que impede que o vírus morra no transporte. As zaragatoas são fabricadas pela Hidrofer, empresa certificada para a área de produtos médicos hospitalares em algodão, nomeadamente algodão hidrófilo para uso clínico; o tubo é produzido pela Logoplaste, igualmente certificada para estes produtos e uma das empresas de referência neste setor; o meio de transporte viral é produzido pelo ABC, da Universidade do Algarve, um laboratório certificado; e o processo de esterilização ficou a cargo do Centro Tecnológico e Nuclear, do Instituto Superior Técnico – que não só é um centro certificado como é reconhecido como um dos organismos de excelência neste procedimento.
Bem pode o consórcio ter reunido toda a excelência que podia reunir em Portugal. O Infarmed tinha dúvidas. Que punham em causa o projeto.
- Tinha dúvidas sobre as zaragatoas, porque a haste não tem ponto de quebra – o que não é obrigatório (pode ser cortada com uma tesoura ou bisturi para caber no tubo);
- Mais dúvidas sobre as zaragatoas: a composição em poliéster e algodão seria fiável? – todos os testes dizem que sim;
- Ainda mais dúvidas sobre as zaragatoas: o Infarmed não estava convencido sobre a esterilização por radiação gama – apesar do Técnico ser a única entidade certificada que faz esterilização com radiação gama em toda a Península Ibérica…
- E dúvidas sobre a esterilização da embalagem onde as zaragatoas estão acondicionadas – mais uma vez, processo garantido pelo Técnico que… pois, já percebeu;
- E dúvidas, claro, sobre os tubos utilizados no kit – exatamente os mesmos tubos da VWR (Logoplaste) que têm certificação CE;
- E ainda dúvidas sobre o líquido que serve como meio de transporte – que é produzido pelo ABC seguindo os protocolos do Instituto Ricardo Jorge;
- Até o facto de o kit ser produzido por um consórcio, e não por uma empresa, levantou dúvidas ao Infarmed.
Made in Portugal x made in China
Algumas exigências do Infarmed levariam um ano a ser cumpridas, se fossem levadas à letra – e o objetivo era dar resposta de imediato. Outras, foram ultrapassadas em tempo recorde. Facto divertido: logo a seguir ao chumbo do Infarmed, que tantas dúvidas colocou em relação às zaragatoas, estas receberam certificação CE pela Associação Portuguesa de Certificação (APCER). O produto era o mesmo, a informação apresentada também.
Outro facto divertido: o Infarmed colocou muitas questões em relação à rotulagem e à informação incluída nos kits. Deu sugestões do que devia ser acrescentado, retirado e reescrito. Mas o material semelhante que Portugal continua a importar da China não parece sujeito ao mesmo grau de exigência. Nos folhetos informativos, o Infarmed tem normas sobre qual a informação que deve acompanhar “a mercadoria”, e que deve estar “em português ou, em alternativa, preferencialmente, em inglês ou em espanhol”. Fica a dúvida sobre os folhetos informativos em mandarim que acompanham zaragatoas entretanto comercializadas em Portugal – como o caso documentado abaixo.
Ou seja, a exigência e o rigor colocados na análise do kit português não tem paralelo com o que se passa em relação aos produtos importados por grandes intermediários. Nos vários casos de desconformidades que estão documentados e têm circulado entre agentes do setor, há esta imagem de um tubo com meio de transporte… com bolor.
Ou esta, de tubos com meio de transporte em versão pantone – o líquido devia ser sempre da mesma cor, “amarelo pálido transparente”, e não em vários tons de rosa e laranja. Estes casos têm sido denunciados ao Infarmed.
Um cluster à espera
A luz verde condicional da Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde ao kit de teste português permite a sua “disponibilização no mercado nacional, na situação de emergência causada pela Covid-19, para fornecimento de laboratórios de universidades e centros de investigação referenciados para o diagnóstico de SARS-CoV-2” – desde que, entre outras condições, sejam realizada… uma série de novos ensaios de esterilidade (a radiação gama do IST não convence o Infarmed)
Entretanto, há um mercado de exportação à espera. Compradores interessados no kit não faltam, de Espanha ao Brasil e a África. O mesmo se passa com outros dispositivos, como os novos ventiladores made in Portugal. Sobre esses, Manuel Heitor diz que já estão a ser exportados para o Brasil e para países africanos. Once again… os ventiladores já têm certificação CE, mas o Infarmed ainda não validou o processo.
O objetivo, diz o ministro da Ciência, é tornar Portugal competitivo na indústria de dispositivos biomédicos, bem como em equipamentos de proteção. O governante fala numa “janela de oportunidade muito importante” para “nos posicionarmos no contexto europeu e global”, quando o país e a Europa apostam na “formação de novas cadeias de produção quer ao nível de matérias-primas, quer do fornecimento de produtos básicos, como os equipamentos de proteção individual ou elementos tão simples como as zaragatoas”.
As conversas entre os ministérios da Ciência, Economia e Saúde para a criação do novo organismo já decorrem. “Estou certo de que nos próximos meses podemos dignificar a nossa capacidade técnica e científica também com capacidade institucional”, disse-me o ministro. “Dignificar” parece uma palavra adequada.
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A incrível e triste história do Infarmed e do kit português de teste Covid
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