Orçamento novo com práticas velhas e contas opacas
A proposta de alteração ao Orçamento é na prática um novo Orçamento do Estado, mas que não tem uma estratégia definida, limita-se a esperar pelo "milagre europeu".
A UTAO foi bastante crítica sobre a proposta de alteração orçamental que o Governo apresentou. Sobretudo pela opacidade que a proposta revela, o que impede um correto e completo escrutínio.
Um primeiro exemplo: o Governo justifica a necessidade da proposta de alteração ao OE com o Programa de Estabilização Económica e Social (PEES), mas é impossível apurar o impacto das medidas deste programa no saldo orçamental, bem como o impacto das medidas Covid-19 anteriores. Ou seja, há uma proposta de alteração orçamental que é fortemente opaca em relação ao impacto do seu objeto.
A UTAO indica que a informação que acompanha a proposta de alteração do OE não permite perceber o que na evolução das contas públicas (em contabilidade pública e em contabilidade nacional) resulta das medidas do PEES (cada uma individualizada e o seu agregado), o que resulta das medidas anteriormente adotadas para combater a crise da Covid-19, e o que resulta dos estabilizadores automáticos (perda de receita e aumento de despesa com subsídios de desemprego).
Outro exemplo: o Governo avançou com um conjunto de mexidas no sistema fiscal, seguindo várias propostas do programa de recuperação económica do PSD, nomeadamente no reporte de prejuízos, no crédito fiscal de investimento, no regime fiscal das fusões e aquisições, bem como, num âmbito extrafiscal, no alargamento dos seguros de crédito, e ainda no diferimento de algumas obrigações fiscais. Porém, não há qualquer indicação do impacto na receita destas medidas.
Ainda em matéria de receita fiscal, é visível que a principal quebra advém do IVA. Mas como já aqui referi na análise a esta proposta de alteração ao OE, o IVA cai mais de 10%, com as previsões de quebra do consumo privado a serem de 4.3%. Refira-se que os cenários macroeconómicos das entidades independentes (Conselho de Finanças Públicas, Banco de Portugal ou OCDE) apontam para quebras do consumo privado entre os 8% e os 10%, ou seja, mais do dobro da previsão do Governo. Uma quebra do consumo muito superior à estimada pelo Governo criará um problema na previsão de receita do IVA. Depois, como também já referi aqui no ECO, há o problema de a receita do IRS crescer em 2020 face a 2019 nas previsões do Governo. Embora tenha havido uma atualização de vencimentos na função pública, parece curto para compensar a brutal quebra de rendimentos do setor privado devido a esta pandemia e às suas consequências económicas.
O IVA cai mais de 10%, com as previsões de quebra do consumo privado a serem de 4.3%. Refira-se que os cenários macroeconómicos das entidades independentes (Conselho de Finanças Públicas, Banco de Portugal ou OCDE) apontam para quebras do consumo privado entre os 8% e os 10%, ou seja, mais do dobro da previsão do Governo. Uma quebra do consumo muito superior à estimada pelo Governo criará um problema na previsão de receita do IVA.
Por outro lado, a UTAO estima que as medidas tomadas de resposta à crise (enquadradas em 4 categorias: estímulos ao emprego, coesão social, empresas e quadro institucional) totalizam cerca de 3.2 mil milhões €, mas que não é possível estimar o seu impacto em termos do défice orçamental (dado que várias medidas terão comparticipação de fundos comunitários, informação também omissa). As medidas de apoio ao emprego somam 2.3 mil milhões, as de cariz social cerca de 750 milhões e as medidas para as empresas cerca de 116 milhões, sendo que as medidas institucionais (como o endividamento das regiões ou mudanças no visto prévio do Tribunal de Contas) têm um impacto residual.
As críticas da UTAO continuam, nomeadamente sobre as empresas públicas e sobre as questões de endividamento das regiões autónomas. No caso das regiões, é preciso ter cuidado com o relaxamento nas regras de endividamento, o que também se aplica aos municípios.
Embora se compreenda a necessidade destas entidades se endividarem mais, dada a situação de crise e de perda de receita, não deixa de ser verdade aquilo que é dito na análise da UTAO: “A replicação de exceções, tanto em tempos de crise como em tempos de bonança, descredibiliza o próprio edifício legislativo da AR sobre estabilidade e previsibilidade orçamentais.”
Depois, a UTAO também alerta para algo simples, mas que do ponto de vista da propaganda política funciona bem: a contribuição adicional do setor bancário. Refere a UTAO que o setor bancário é dos setores de atividade com maior capacidade para repercutir impostos sobre o consumo, uma vez que a procura por serviços bancários é altamente inelástica (a quantidade procurada não reage grandemente ao preço) e a concorrência está muito longe de ser perfeita. A banca pagará ao fisco o imposto – incidência legal –, mas quem paga o imposto, de facto, é o consumidor de serviços bancários – incidência económica.
Sobre o cenário macroeconómico, a UTAO alerta, como outros o têm feito, que as previsões do Governo são francamente otimistas face às previsões das outras entidades. Ainda na semana passada, o Banco de Portugal apresentou as suas previsões, prevendo uma quebra do PIB, tal como o CFP e a OCDE, em torno dos 10%, mesmo num cenário em que não haja uma 2ª vaga da epidemia.
Temos, pois, uma proposta de alteração ao OE que é na prática um novo OE. Mas que não tem uma estratégia definida, um rumo para recuperar a economia. O Governo espera o “milagre Europeu”. Ou seja que o pacote de ajuda Europeia resolva todos os problemas. Isso não existe e, como tal, não vai suceder. A resposta Europeia é muito importante. Mas a resposta Europeia é “uma condição necessária, mas não suficiente” para a recuperação da economia nacional. A simples disponibilização de dinheiros não resolve problemas. Temos o exemplo destes últimos 20 anos, em que os fundos Europeus não tornaram a economia Portuguesa mais competitiva, nem com maiores taxas de crescimento. Despejar dinheiro em cima de um problema normalmente leva ao desaparecimento de um dos dois, só que raramente é o problema.
A resposta Europeia é “uma condição necessária, mas não suficiente” para a recuperação da economia nacional. A simples disponibilização de dinheiros não resolve problemas. Temos o exemplo destes últimos 20 anos, em que os fundos Europeus não tornaram a economia Portuguesa mais competitiva.
Sugiro a leitura do especial que aqui publiquei no ECO, intitulado “A economia Portuguesa pré Corona vírus”. A economia nacional já era pouco competitiva e com grandes fragilidades antes desta crise. O covid-19 veio apenas acentuar e acelerar essa fragilidade. É preciso atuar rapidamente nos estrangulamentos da economia Portuguesa. E há muitas medidas a serem tomadas e que são independentes da resposta Europeia. Esperar pelo “milagre Europeu” é um erro e terá consequências dramáticas.
Post-scriptum: O Governo deu entrada de uma proposta de alteração da Lei de Enquadramento Orçamental (LEO). Quando, em 2015, foi aprovada a nova LEO, deveria ter-se iniciado uma reforma profunda da gestão financeira do Estado, que infelizmente ainda se rege sobretudo por regras e procedimentos que data dos anos 80 ou mesmo dos anos 60. Como já expliquei aqui no ECO, esta reforma é crítica para a melhoria dos serviços públicos, da qualidade da despesa pública e para a sustentabilidade das finanças públicas.
Infelizmente, nestes últimos 5 anos, o Governo (e o responsável por esta reforma, o ex-secretário de Estado do Orçamento, Professor João Leão, é agora ministro das Finanças) nada fez para o avançar desta reforma. Iniciada em 2015, em 2018 foi adiada para 2022 e agora é adiada novamente para 2023-2024. Sobre isso, em dezembro de 2019, o Tribunal de Contas foi arrasador. Dos 21 projetos necessários à reforma, apenas dois tinham sido concluídos.
Trata-se de uma reforma com medidas como a orçamentação por programas ou a revisão das competências dos ministros setoriais para terem mais autonomia, medidas que são um anátema para um Secretário de Estado do Orçamento (agora Ministro das Finanças) que só se preocupa com as cativações. Refira-se que o Professor João Leão demorou um ano e meio a criar a unidade que implementa essa reforma (a uniLEO, criada em abril/maio de 2017). E nestes três anos de existência, essa unidade, que é crítica para uma reforma que é também fundamental, vai já no terceiro diretor, sendo que os dois anteriores saíram em desacordo com a estratégia de protelar as medidas necessárias para concretizar a reforma do processo orçamental.
Nas próximas semanas falarei sobre a proposta do Governo. Mas, logo à cabeça, há uma medida que deixa qualquer pessoa de bom senso arrepiada: o Governo quer legislar no sentido de obrigar a Assembleia da República, em cada iniciativa legislativa, a ter uma análise por parte da UTAO. É incompreensível que o Governo queira definir o modo de funcionamento do Parlamento.
Compete à AR decidir, em cada proposta que seja feita pelos deputados, se há matéria para uma avaliação mais completa ou não. Além de que a UTAO não tem capacidade para analisar todas as propostas e muitas delas nem faz sentido que tenham uma análise com um detalhe tão significativo. E convém recordar que a principal missão da UTAO é o controlo e acompanhamento das contas públicas a nível macro.
A UTAO tem feito avaliações relativamente a alguns diplomas que têm um impacto orçamental significativo. Mas não lhe compete avaliar toda e qualquer iniciativa legislativa, nem faz sentido que o venha a fazer.
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