Quem tem medo da reforma das Finanças Públicas?
Mais um passo atrás e mais tempo perdido na reforma mais importante no Estado. A reforma dos serviços públicos começa com a reforma das Finanças Públicas.
O Governo apresentou uma proposta de alteração à Lei de Enquadramento Orçamental que representa não apenas um adiamento dessa reforma, mas também um retrocesso na transparência e qualidade das contas públicas.
Recorde-se que, em 2015, foi aprovada a nova Lei de Enquadramento Orçamental (LEO). A LEO é a lei base da gestão financeira do setor público. A nova LEO pressuponha uma reforma profunda das Finanças Públicas. Quando foi aprovada, deveria ter-se iniciado uma reforma profunda da gestão financeira do Estado, que infelizmente ainda se rege por regras e procedimentos que datam dos anos 80 ou mesmo dos anos 60 do século passado. Como já expliquei aqui no ECO, esta reforma é crítica para a melhoria dos serviços públicos, da qualidade da despesa pública e para a sustentabilidade das finanças públicas.
Conforme refere a UTAO no seu parecer a esta proposta do Governo:
- “Na LEO estão as traves-mestras das finanças públicas nacionais. Juntamente com as suas declinações subnacionais (lei das finanças regionais e lei das finanças locais), estabelece o quadro de referência para a governança das contas do sector das Administrações Públicas (AP). Define as regras do jogo, ou seja: para todos os subsectores das AP, fixa os princípios e as regras de disciplina orçamental; para os subsectores da Administração Central e da Segurança Social, fixa, ainda, os fundamentos a que devem obedecer o processo orçamental, o sistema de informação contabilística, a avaliação, a fiscalização, o controlo e a auditoria das contas públicas. Por natureza, é o elemento normativo estruturante da qualidade das finanças públicas”.
Só que, nestes últimos 5 anos, o Governo (e o responsável por esta reforma, o ex-secretário de Estado do Orçamento, Professor João Leão, é agora ministro das Finanças) foi adiando sucessivamente esta reforma. Iniciada em 2015, em 2018 foi adiada para 2022 e agora é adiada novamente para 2023-2024. O Tribunal de Contas, num relatório do ano passado, concluiu que dos 21 projetos necessários à reforma, apenas dois tinham sido concluídos. Isto não surpreende, vindo do “artífice das cativações” João Leão (a expressão é do Doutor Centeno, que assim o apresentou na convenção nacional do PS realizada no Verão de 2019).
Trata-se de uma reforma com medidas como a orçamentação por programas ou a revisão das competências dos ministros setoriais para terem mais autonomia, medidas que são um anátema para um secretário de Estado do Orçamento (agora ministro das Finanças) que só se preocupa com as cativações. Refira-se que o professor João Leão demorou um ano e meio a criar a unidade que implementa essa reforma (a uniLEO, criada em abril-maio de 2017). E nestes três anos de existência, essa unidade, que é crítica para uma reforma que é também fundamental, vai já no terceiro diretor, sendo que os dois anteriores saíram em desacordo com a estratégia de protelar as medidas necessárias para concretizar a reforma do processo orçamental.
O que é que o governo veio agora propor de revisão da LEO?
Há duas alterações que são positivas.
- Primeiro, o Governo propõe que, no cenário macroeconómico do OE, seja fundamentado as diferenças face aos cenários macroeconómicos das restantes entidades (Banco de Portugal, CFP, Comissão Europeia, FMI e OCDE).
- Segundo, o Governo propõe que no relatório do OE passe a vir discriminado os dividendos das empresas detidas ou participadas pelo Estado.
Depois, há dois aspetos que são razoáveis.
- Por um lado, relativamente ao Orçamento do Estado, que deveria passar a ser entregue a 1 de outubro já em 2020 (para o OE2021), o governo pede que seja apenas a 10 de outubro (provavelmente o governo entende que dada esta situação de pandemia e de crise precisa de mais uns dias no seu planeamento de elaboração e entrega do OE, o que não é grave).
- Por outro lado, permite mais cinco dias de discussão no Parlamento. Diga-se que Portugal é o país da OCDE onde o Parlamento tem menos tempo para discutir o OE.
Sobre o resto, recomendo a leitura do parecer da UTAO sobre esta proposta. É uma análise muito crítica, como se constata por esta passagem do parecer:
- “As alterações propostas são tudo menos insignificantes e deveriam justificar um debate público alargado e esclarecido sobre as opções tomadas pelo Governo na PPL. Infelizmente, não há documentação técnica que fundamente a PPL e o prazo que a AR entendeu atribuir para a discussão e a eventual aprovação do diploma é tão exíguo que acarreta o risco de uma decisão parlamentar com consequências sérias e duradouras para a qualidade das contas públicas não ter em conta vários argumentos que recomendam prudência e reflexão.”
Ora, vale a pena olhar para esta proposta do Governo sobre três prismas: 1) qualidade das contas públicas; 2) transparência; 3) controlo das contas públicas.
Sobre a qualidade das contas públicas: Uma das propostas muita negativa é a alteração ao Quadro plurianual das despesas públicas. Simplificando, o que se pretendia com este Quadro era que o OE passasse a ter uma visão de médio prazo relativamente à execução da despesa. Isto é, é essencial para qualquer gestor saber quantos recursos terá nos próximos 3-4 anos. Na prática, este pilar de médio prazo permite dar estabilidade e previsibilidade à despesa e alinhar os incentivos de cada ministério com a política orçamental definida pelo ministro das Finanças e pelo Governo como um todo.
Ora, este Governo foi protelando esta medida essencial da reforma das Finanças Públicas. E agora, na prática, propõe-se a abandonar esta ideia. Quem é que precisa disso, se toda a gestão orçamental é feita pelo Professor Leão numa “gaveta gigante de cativações”?
Outra proposta fortemente negativa para a melhoria das contas públicas é a decisão de praticamente abandonar o princípio do acréscimo, outro dos pilares fundamentais da reforma das Finanças Públicas.
O OE é feito numa base de caixa (recebimentos e pagamentos), mas o reporte a Bruxelas é feito em contas nacionais, numa lógica de “caixa ajustado” (do lado da receita é caixa, com um ajustamento temporal para o IVA e os IEC; para a despesa é na lógica do compromisso – ou seja, regista-se a despesa quando existe uma fatura e não quando é feito o pagamento). Adicionalmente, o Estado não tem um balanço.
Ou seja, o Estado é gerido, do ponto de vista financeiro, não como uma empresa moderna, mas como um condomínio, onde se vai registando o dinheiro que entra e que sai, mas não se registam ativos, passivos e responsabilidades futuras. Só que o Estado representa mais de 100 mil milhões de € de despesa anualmente e terá, nos seus diferentes níveis, perto de um milhão de funcionários.
Depois de um investimento forte para fazer esta mudança, em que participou o Eurostat e o Serviço de Apoio às Reformas Estruturais da Comissão Europeia, com financiamento comunitário e rasgados elogios ao trabalho técnico da UniLeo e da DGO, o governo e o “artífice das cativações” vão deitar tudo fora. Porque transparência e rigor nunca foi do seu interesse, e muito menos agora, que se acabaram as “vacas gordas” (expressão usada pelo Primeiro-Ministro para definir o período entre 2016 e 2019).
Volto ao parecer da UTAO:
- “O Plano de Implementação está escorado nalguns projetos técnicos cuja complexidade levou à contratação de estruturas especializadas da OCDE e do Banco Mundial, e cujo carácter inovador a nível internacional motivou o Eurostat e o Structural Reform Support Service da CE a comparticipar no financiamento das despesas dos projetos. São os projetos: Contabilidade Financeira (de acréscimo) e Contabilidade Nacional; Entidade Contabilística Estado; Gestão de tesouraria; Orçamentação por programas; Modelo de programação orçamental plurianual; Reconhecimento dos contratos de concessão do Estado na Entidade Contabilística Estado nos termos da IPSAS 32: Service Concession Arrangements: Grantor; Formação em gestão financeira pública. O que é feito destes projetos e que contas têm sido prestadas aos parceiros internacionais? Para além do custo de oportunidade dos recursos nacionais e internacionais já afundado na execução destes projetos, o país deve também acautelar os eventuais danos reputacionais internacionais que poderão emergir, com elevada probabilidade, da eliminação para sempre de traves-mestras da reforma de 2015 e do adiamento, sem justificação plausível apresentada, da concretização de outras peças estruturantes”.
Basicamente, com a proposta do Governo, cada organismo público deixa de ter de fazer as suas contas com um balanço e uma demonstração de resultados, como qualquer empresa, e passa só a usar o sistema de caixa, como qualquer administração do condomínio. Perde-se assim um instrumento fundamental para saber a verdadeira situação económico-financeira de cada organismo e do Estado como um todo, bem como deixa de ser possível ponderar os efeitos das medidas e das políticas. Provavelmente, é esse o objetivo do governo.
Sobre a transparência das contas públicas (ou melhor, sobre a cada vez maior opacidade das contas), e em cima da opacidade que é criada pelas medidas descritas atrás, o Governo ainda propõe deixar de prestar informação sobre a despesa fiscal (isto é, a receita perdida com os benefícios fiscais) e sobre a contabilidade financeira das APs, nomeadamente a necessidade de consolidação contabilística (ver o Estado como um todo, como faz qualquer grande grupo de empresas – e o Estado é um grupo com mais de 5 mil organismos!).
Ainda dentro da opacidade, como é expectável, o “artífice das cativações” quer ainda menos informação sobre a única forma que conhece para gerir as contas públicas: as cativações.
E como é obvio, não tendo praticamente avançado nestes cinco anos com a reforma das Finanças Públicas (pelo contrário, apenas protelando, adiando e obstaculizando), o Professor Leão nada diz nesta proposta sobre a implementação da LEO.
Sobre o controlo das contas públicas, a proposta mais descabida visa o Parlamento e a UTAO. É uma proposta que procura apenas destruir todo o trabalho e capital de reconhecimento que a UTAO granjeou nestes quase 15 anos.
O governo quer legislar no sentido de obrigar a Assembleia da República, em cada iniciativa legislativa, a ter uma análise por parte da UTAO. É incompreensível que o Governo queira definir o modo de funcionamento do Parlamento. Compete à AR decidir, em cada proposta que seja feita pelos deputados, se há matéria para uma avaliação mais completa ou não. Além de que a UTAO não tem capacidade para analisar todas as propostas e muitas delas nem faz sentido que tenham uma análise com um detalhe tão significativo. E convém recordar que a principal missão da UTAO é o controlo e acompanhamento das contas públicas a nível macro. A UTAO tem feito avaliações relativamente a alguns diplomas que têm um impacto orçamental significativo. Mas não lhe compete avaliar toda e qualquer iniciativa legislativa, nem faz sentido que o venha a fazer.
Curiosamente, o Governo e o “artífice das cativações” querem que os outros sejam muito rigorosos nas suas propostas, mas nesta proposta nem sequer cumpriu a lei, que determina que “as propostas de lei devem ser acompanhadas dos estudos, documentos e pareceres que as tenham fundamentado”.
Mais um passo atrás e mais tempo perdido na reforma mais importante no Estado. Como tenho repetido frequentemente: a reforma dos serviços públicos começa com a reforma das Finanças Públicas. Não é possível reformar o Estado sem primeiro reformar o Terreiro do Paço.
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