Fiscalizar o Governo e a TAP
Qual vai ser o futuro da TAP? O cenário da nacionalização é o pior de todos, o cenário da insolvência é o menos mau.
Sobre a recompra de 50% da TAP pelo Estado português, conduzida em 2017 pelo governo de António Costa, escreveu o Tribunal de Contas (no relatório de auditoria nº10/2018) o seguinte: “(…) nas situações de incumprimento ou de bloqueio, os novos acordos criaram o risco adicional para o Estado, de pagar, no mínimo, €217,5 M (a capitalização efetuada pela Atlantic Gateway)” (p.26). Naquele mesmo relatório, o Tribunal de Contas concluía ainda que “Com a recompra, o Estado recuperou controlo estratégico, mas perdeu direitos económicos, além de assumir maiores responsabilidades na capitalização e no financiamento da empresa.” (p.31). Em suma, a operação serviu os interesses políticos do PS e seus convivas, mas não os dos contribuintes.
Está visto que a recuperação do “controlo estratégico” da TAP, justificada pelo executivo com base [no] “papel determinante da empresa na projeção internacional de Portugal” (p.19), vai sair caríssima aos contribuintes portugueses. A avaliar pelo referido relatório de auditoria do Tribunal de Contas, pelas várias centenas de milhões de euros de capitais próprios negativos, e pelos quase 400 milhões de euros de prejuízos só no primeiro trimestre de 2020, a ajuda pública de 1.200 milhões arrisca-se a ser a primeira de várias tranches a realizar nos próximos anos. No entanto, no panorama político nacional poucos são aqueles que verdadeiramente estão interessados em discutir a ajuda à TAP com a transparência necessária.
A proposta era da Iniciativa Liberal, foi avançada no Parlamento na passada 6ª feira, e o objectivo era fazer depender de discussão e aprovação prévia na Assembleia da República a intervenção do Governo na TAP. Quando estão em causa 1.200 milhões de euros, e numa altura em que o orçamento da saúde é reforçado em apenas 500 milhões, era o mínimo que se poderia fazer. Mas a proposta da Iniciativa Liberal foi rejeitada pelo PS, PSD, BE, PCP, PEV e pela deputada não inscrita Joacine Katar Moreira. Estes representantes políticos passaram assim a ser coniventes com o que, de agora em diante, vier a acontecer na utilização de dinheiro dos contribuintes na TAP. Sobre transparência e escrutínio estamos, portanto, conversados.
Na mesma sessão, a Assembleia da República também rejeitou a nacionalização da TAP proposta pelo BE, PCP e PEV. O PS, em particular, votou contra essa proposta de nacionalização. Mas eis que, apenas uns dias depois, o ministro Pedro Nuno Santos vem acenar com a ameaça da nacionalização! Há um mês, este mesmo ministro afirmava-se preparado para qualquer cenário, até mesmo para o cenário de insolvência da TAP. Todavia, perante a iminência de insolvência, é ao ministro que agora tremem as pernas. A exemplo do seu antecessor, que recomprou 50% da TAP onerando para o efeito os contribuintes, e que agora está confortavelmente em Bruxelas, também o actual detentor da pasta se prepara para tentar resolver o problema, lançando dinheiro para cima do problema. Com o dinheiro dos outros, qualquer um é ministro.
Aqui chegados, quais são as alternativas do Estado?
- Alternativa A: deixar a TAP cair na insolvência.
- Alternativa B: nacionalizar a TAP.
- Alternativa C: adquirir a participação dos privados na TAP.
Ao que parece, o Governo contempla as alternativas B e C, mas não a alternativa A. Porém, é na alternativa A que reside a solução menos má para os contribuintes porque, mesmo que o Governo viesse a resgatar a empresa depois de um processo de insolvência, os contribuintes ficariam seguramente aliviados de certos custos, mormente os custos decorrentes das cláusulas indemnizatórias e da assunção de dívida associadas ao cenário “nacionalização”. Ficariam também a salvo de negociações eventualmente menos claras entre o Estado e algum dos privados, a fim da compra da participação de alguma das partes.
A TAP entrou na crise pandémica em situação de falência técnica, ou seja, com capitais próprios negativos. No final de 2018, o passivo era superior ao activo em mais de 600 milhões de euros e em 2019, de acordo com a imprensa, a situação líquida agravou-se, tornando-se ainda mais negativa. Nos últimos 45 anos, a TAP teve dois anos de resultados positivos. Desde 2018 os prejuízos voltaram a ser regra, mesmo numa altura de “boom” turístico em Portugal. Na verdade, a TAP é estratégica apenas em Lisboa, onde, segundo os últimos dados da ANAC, responde por 56% do total de passageiros transportados. No Funchal também lidera, mas com uma quota de mercado de somente 26%. Já nos aeroportos de Faro, Ponta Delgada e Porto, onde os líderes de mercado são outros, transporta apenas 8%, 15% e 19% do total de passageiros, respectivamente.
O cenário da nacionalização é o pior de todos. Obrigará o Estado a devolver aos privados os tais 217 milhões de euros de que fala o Tribunal de Contas – ou, pior ainda, a sujeitar o Estado ao vexame de se ver obrigado a fazê-lo por decisão do tribunal arbitral que, provavelmente, decidirá a favor dos privados. Obrigará o Estado a assumir a dívida da empresa na forma de dívida pública. E obrigará o Estado a ir em busca de equipa de gestão, de órgãos sociais e, muito importante também, de órgãos de fiscalização que assegurem escrutínio e independência. Infelizmente, em tudo isto, é de temer o pior. Muitas injecções de capital e muitos “jobs for the boys”. No final, a TAP pode muito bem acabar como a Alitalia. Em declínio e sempre a gastar.
O cenário da insolvência é o menos mau. No limite, significaria o fim de linha para a TAP e contribuintes. Mas, por outro lado, existindo vontade política de não a deixar morrer, a insolvência permitiria uma negociação com todos os credores, incluindo bancos, obrigacionistas, partes relacionadas, empresas de “leasing” e fornecedores diversos, saneando o balanço antes de uma eventual recapitalização da empresa. A própria recapitalização deveria ser liderada por privados, que credibilizassem as hipóteses de viabilidade da companhia. Há experiências que deveriam estar a ser estudadas. Por exemplo, na Noruega, o Governo local concedeu um empréstimo à Norwegian Air, mas só depois de esta ter atingido uma autonomia financeira mínima mediante troca de dívida por capital negociada junto das empresas de “leasing” de aviões (que assim ficaram accionistas).
O sector da aviação está sob ameaça existencial em todo o mundo. As modalidades de intervenção governamental têm passado pelo “layoff” e também pelos empréstimos públicos em troca de reestruturações operacionais. No caso da Lufthansa, o Estado alemão também entrou no capital da empresa, mas fê-lo muito a desconto face ao valor nominal das acções. Já nos EUA as empresas têm beneficiado de empréstimos federais, sujeitando-se a condições múltiplas, mas continuam a financiar-se em mercado. A American Airlines, por exemplo, aceitou pagar 11,75% por 1.000 milhões de dólares em dívida a cinco anos, bem acima dos 3,8%-4,3% avançados na imprensa portuguesa como o custo a aplicar à TAP pelos 1.200 milhões de euros.
Qual é então a diferença entre a TAP e as demais? Primeiro, é a situação cronicamente deficitária da empresa, que nesta altura precisará dos 1.200 milhões de euros só para recompor o défice de capitais próprios. Segundo, é o reduzido incentivo dos privados em recapitalizarem eles próprios a companhia, ou aceitarem a reestruturação imposta pela Comissão Europeia, em face do direito de regresso sobre o investimento inicial que a nacionalização lhes concederia (cortesia do governo de António Costa). Terceiro, é a ausência de uma estrutura de “governance” que dê aos contribuintes garantias de escrutínio sobre a companhia. E, quarto, é a falta de sentido estratégico, para o conjunto dos contribuintes, de uma empresa que só é estratégica em Lisboa, sendo que, em rigor, estratégico é o “hub” e não a companhia.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
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