As questões difíceis ficaram sem resposta
O acordo dos líderes europeus revela uma tentativa de federalizar a União Europeia, é a primeira vez que haverá uma emissão de dívida comum, mas há muitos temas ainda em aberto.
O Conselho Europeu dos últimos dias foi indiscutivelmente histórico, apesar de bastante sofrido. É a primeira vez que a União Europeia se vai endividar em nome de todos os seus estados membros, e será talvez a primeira vez que a União Europeia define uma agenda tão específica – a descarbonização e a digitalização – a aplicar em todos os países ao mesmo tempo, independentemente dos seus níveis de desenvolvimento. Há notoriamente uma tentativa de federalizar a União Europeia. Mas são também cada vez mais notórias as divisões nacionais, numa altura em que a globalização vai retrocedendo, até mesmo no seio da Europa.
Tenho-o escrito e insisto: mais do que federalizar a União Europeia de cima para baixo, parecer-me-ia mais eficaz que se federalizassem motivações e valores comuns na Europa de baixo para cima. Assim, do mesmo modo que há décadas se construiu o mercado comum, que tanto ajudou a aproximar populações outrora desavindas, agora seria a altura de potenciar ideias igualmente aglutinadoras (começando, por exemplo, conforme um outro texto meu, com um “mercado comum da saúde”). Neste sentido, foi sagaz a introdução na agenda da cimeira de duas âncoras comuns, como a descarbonização e a digitalização. Mas serão elas suficientemente fortes?
Analisada a cimeira, não há ainda forma de reembolso da dívida a emitir pela União Europeia, cujo reembolso parcial iniciar-se-á em 2028. As ideias discutidas passam por uma taxa sobre o plástico e pelo alargamento do mercado de emissões de carbono na União Europeia a actividades até agora não abrangidas. Estas enquadram-se no eixo da descarbonização, todavia, não vão gerar recursos suficientes. Quanto ao tributo a incidir sobre importações provenientes de países não europeus, cuja pegada ecológica não cumprisse determinados requisitos, ou os impostos sobre as multinacionais dos sectores digitais, tudo isso saiu de cena nos últimos dias.
As moedas de troca, acordadas a fim da aprovação das subvenções a fundo perdido pelos frugais, foram significativas.
- Primeiro, a devolução a alguns países (inspirada no célebre “cheque britânico”) de parte das suas contribuições nacionais, o que, para além de fomentar a diferença de critérios, representa o afastamento contributivo desses países face ao projecto europeu.
- Segundo, a redução de fundos sectoriais no orçamento da União Europeia que, atingindo iniciativas como o programa Horizonte ou os fundos destinados às migrações – mantendo os fundos da PAC (?!) –, não foram coerentes com a política declarada da própria União Europeia.
Sobre o direito de veto e o bloqueio de fundos, por incumprimento nas reformas estruturais ou por incumprimento no respeito da lei europeia, também não houve clareza. Ficou, aliás, a ideia de que neste domínio há muita coisa que ainda está em aberto. E isto, mesmo assumindo que já ninguém estará em condições de renegar ao acordo político saído da cimeira, significa que no futuro teremos novos Conselhos Europeus especialmente aziagos, divisivos e longos. É nestas circunstâncias que os eixos da descarbonização e da digitalização serão porventura insuficientes para assegurar o “cimento” necessário nesta nova etapa do projecto europeu.
A pandemia veio agravar uma tendência macroeconómica que já se sentia nos últimos anos: o recuo da globalização. É um processo que está em curso, que não é de agora, e que se revelará através de um maior distanciamento entre os países. A este respeito, a reacção inicial dos países da União Europeia à pandemia foi reveladora e passou precisamente pelo encerramento das fronteiras. Há, pois, nesta discussão europeia um confronto entre forças centrípetas e centrífugas. A existência de pontas soltas nas negociações políticas e as disparidades macroeconómicas que teimam em agravar-se acentuarão esse confronto.
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