Reféns do racismo
É ingénuo pensar que a extrema-direita irá ficar inactiva. É ingénuo pensar que a extrema-esquerda irá calibrar o discurso. O fenómeno de canibalização da democracia liberal é a topografia do tempo.
A extrema-direita e a extrema-esquerda são irmãs no ódio. É verdade que a extrema-esquerda está inserida no sistema democrático, cumpre com os preceitos constitucionais, goza de um conjunto de direitos e de deveres. Como também é verdade que a extrema-direita não pretende estar inserida no sistema democrático, não cumpre com os preceitos constitucionais, não quer nem pretende um conjunto de direitos e de deveres concedidos por um regime que despreza e que sonha ver destruído.
No contexto de uma democracia liberal, enquanto o ódio na extrema-esquerda é uma forma de discurso político, o ódio na extrema-direita é uma forma de acção política. A principal consequência é que se a extrema-esquerda insulta e cancela, a extrema-direita agride e ameaça matar. Na morte dos impérios, eis um sinal dos tempos.
Depois há uma outra questão fundamental associada a estas ideologias do ódio. Se a extrema-esquerda assume a “nostalgia do futuro”, a extrema-direita reclama a “nostalgia do passado”. Na “nostalgia do futuro”, vulgo utopia, existe um regime unitário que envolve toda a humanidade numa comunidade fraterna, igualitária, progressista. Na “nostalgia do passado”, vulgo “idade de ouro”, existe uma hierarquia estabelecida que organiza as várias categorias da humanidade numa comunidade vertical, marcada pela desigualdade e pela autoridade. As duas visões são politicamente incompatíveis, pois a concretização de qualquer uma implica a destruição da outra.
E aqui surge verdadeiramente a questão do racismo. Para a extrema-direita toda e qualquer comunidade culturalmente distinta, etnicamente diferente, é considerada uma ameaça à ordem e à identidade da comunidade e da nação. Para a extrema-direita ser português é ser branco, respeitar os usos e costumes ancestrais, representar a raça que tem como lugar natural o topo da hierarquia. O negro é uma espécie invasora, um parasita das paragens distantes, uma ameaça à identidade e à integridade de uma nação orgulhosa e secular.
Mudar a nação para integrar o outro é uma traição. Neste labirinto linear, a solução política é a purificação da terra pátria, a expulsão dos elementos estranhos será um factor essencial ao restabelecimento da nova ordem. Os brancos que não aceitem este raciocínio prático são objectos de diabolização doutrinal e transformados em colaboradores, logo personagens passíveis da violência política. Veja-se as ameaças a activistas e a deputados do país democrático.
Mas a história não acaba aqui. A extrema-esquerda tem vindo a ser tomada por uma exclamação retórica centrada numa variante da política da identidade, um ramo ideológico que pretende corrigir as injustiças historicamente cometidas sobre os negros. O interessante e tóxico da questão é que a apologia de uma sensibilidade negra é acompanhada pela estigmatização de todas as expressões de uma identidade branca. Ser branco é ser representante de um conjunto de estruturas sociais e instituições políticas que visam a manutenção da supremacia branca e a persistência da opressão dos negros.
Na lógica da teoria, existe pois a presunção de que mesmo os brancos que se afirmam no debate público como anti-racistas são na realidade representantes de um racismo cultural inscrito na respectiva identidade e no tempo da história. No fundo, é como se os brancos vivessem alienados no conforto do privilégio, um privilégio que os transforma em veículos do mais perigoso dos preconceitos – aceitarem como expressão da justiça a opressão dos negros. Nesta lógica, todos os brancos são racistas.
Nessa fronteira entre brancos e negros, onde apenas os brancos são portadores da doença social do racismo, a solução passa pois pela tomada de consciência da natureza estrutural do racismo; passa pelo reconhecimento da culpa e pela lógica da restituição moral e material; passa também pelo reconhecimento de que o silêncio é simultaneamente cúmplice e manifestação de aprovação perante todas as agressões e violências percepcionadas como racistas pelos visados. Nesta lógica, o racismo é eterno.
Num Portugal tomado pela surpresa, pelo medo, pela indignação, as ameaças da extrema-direita são objectivamente um acto extra-judiciário que se reclama de uma legitimidade subversiva em que a lógica da violência liberta as forças puras da nação. No contexto democrático e constitucional são uma violação do princípio da não coacção política e como tal a expressão objectiva de um crime.
No mesmo Portugal tomado pela apatia, pela saturação, pela indiferença, o discurso da extrema-esquerda é a permanente acusação revolucionária que recai sobre todos e cada um dos portugueses, independentemente das suas convicções morais e acções políticas. É como se o racismo fosse uma característica da espécie, uma entidade abstracta que domina e orienta as acções dos portugueses brancos de modo mecânico e inconsciente. É como se o racismo fosse a infra-estrutura da dominação branca, o segredo da prosperidade, a conspiração dos séculos.
É ingénuo pensar que a extrema-direita irá ficar inactiva. É ingénuo pensar que a extrema-esquerda irá calibrar o discurso. O fenómeno de canibalização da democracia liberal é a topografia do tempo. A polarização traz as cores do futuro. Não aprendemos nada se persistirmos na exclusão política baseada na paleta das cores humanas. A cor é apenas a expressão de um comprimento de onda, não a marca da humanidade.
Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.
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