Choque de realidade – Parte 1
Gestão de crises não é fácil, mas a governação para o soundbite e para as manchetes parece orientar algumas escolhas políticas que dificilmente estão articuladas com as prioridades dos portugueses.
Perante um cenário de enorme incerteza, a novidade da pandemia tornou a atuação dos governos central na resposta à crise. Um pouco por todo o mundo, a prioridade dos governos foi a resposta à crise sanitária e, numa segunda fase, a adoção de medidas que dessem respostas às dificuldades das famílias e das empresas pela perda do rendimento, devido ao período do confinamento. É certo que o governo não é responsável pelo coronavírus, mas as políticas que escolhe – e a execução das mesmas – para a resposta à crise e a retoma económica estão sujeitas ao escrutínio de todos. À medida que nos distanciamos no tempo do início da pandemia é possível irmos fazendo uma avaliação séria e ponderada, económica e política do caminho percorrido até hoje. Os portugueses querem uma comunicação transparente e os políticos devem conduzir os destinos do país de forma a criar confiança nas instituições democráticas. Mas vejamos alguns exemplos dos últimos meses:
- Uma ministra que diz que Portugal pode beneficiar com o coronavírus
Se recuarmos no tempo, em Fevereiro, a Ministra da Agricultura dizia que o coronavírus “até pode ter consequências bastante positivas” para as exportações portuguesas do setor agroalimentar para os mercados asiáticos. Sucede que, à semelhança de outros setores também, o agroalimentar sofreu as consequências da paragem da economia. Nos últimos meses, apesar de alguma retoma recente, o setor registou quebras significativas nas exportações. As dificuldades criadas nas cadeias logísticas pelos constrangimentos nas fronteiras no transporte de mercadorias, nos portos, na suspensão de cargas aéreas veio, naturalmente, contradizer nos números a oportunidade anunciada pela ministra no setor agroalimentar.
- Um ministro que negoceia o seu lugar
A pasta das Finanças, uma das mais importantes na gestão da crise, esteve sob fogo nos últimos meses. Por um lado, devido a desentendimentos internos entre o ex-ministro Centeno e o Primeiro-Ministro António Costa e, por outro, pela necessidade de adoção de medidas com vista ao estímulo da economia com grande impacto no défice e na dívida pública. Um dos assuntos que levou à deterioração pública da relação entre os dois governantes foi o Novo Banco, mas nada impediu nem a saída de um ministro num momento de crise, nem a sua nomeação pelo Conselho de Ministros de que fez parte para Governador do Banco de Portugal. O conceito de conflito de interesses não existe para este governo do Partido Socialista.
- Um ministro que desapareceu
Se há setor que é o reflexo do estado do Estado é a Educação. Em pleno séc. XXI, numa altura em que a digitalização se assume como a nova revolução industrial, uma das soluções que o governo encontrou foi a telescola, dos anos 60! Mais, recentemente, tive oportunidade de visitar uma escola pública do centro de Coimbra. Pude constatar que o parque tecnológico das escolas também pertence ao século passado. A maioria do equipamento informático (computadores, impressoras, etc.) foi adquirido ao abrigo do PRODEP III, um programa operacional da Comissão Europeia 2000-2006. Ou seja, os alunos que no presente estudam para profissões na área da tecnologia que ainda não existem (do futuro), utilizam material completamente obsoleto. Com o surgimento da pandemia, em vários setores da sociedade a criatividade e velocidade de reação e adaptação foram imediatas. Para as escolas, os professores e alunos não foi diferente. No entanto, depois da interrupção letiva da Páscoa manteve-se a incerteza junto do corpo docente sobre as plataformas digitais para lecionar online e até mesmo a reabertura das escolas. Importa referir que em quase toda a Europa já era prioritário e claro o início da escola. O ministério deixou protelar, mas não conseguiu esconder o estado antiquado da Educação e para não variar confiou, uma vez mais, no voluntarismo dos professores para que, com os poucos recursos de que dispõem, providenciassem o melhor possível para os seus alunos. Quem perdeu com a inação do ministro foi o futuro do país, os jovens alunos portugueses.
- Um ministro radical
O setor dos transportes foi dos mais afetados pela pandemia, em particular o transporte aéreo com o dossier TAP a liderar polémicas. É ainda uma incógnita se o turismo regressará a níveis anteriores à pandemia. Ainda assim, o Estado (e os contribuintes) assume o fardo pesado de resgatar, segundo o ministro Pedro Nuno Santos “uma empresa altamente alavancada em dívida”. É importante referir que durante o governo do PSD concluiu-se a privatização da TAP, negócio que foi rapidamente revertido logo que o governo socialista apoiado pela extrema-esquerda toma posse em 2015.
Em matéria de transportes públicos e risco de contágio, o ministro admitiu que o país é “um dos poucos países da Europa” ainda com restrições na lotação dos transportes. A Direção-Geral de Saúde considerou de imediato que tal medida constituía “exposição de alto risco”. Pedro Nuno Santos esquece-se que nos outros países da Europa houve, no passado, estratégias para o transporte coletivo muito diferentes da portuguesa. É natural que em países em que os transportes coletivos têm outra frequência, capacidade de resposta e se adquire material circulante que não esteja a cair aos pedaços seja possível assegurar uma lotação controlada dos mesmos. Em Portugal não é o caso, infelizmente.
O filósofo espanhol Daniel Innerarity defende que “a política está muito parcelada. Os técnicos sabem de uma coisa, os políticos de outra. Um político tem que ter olfato para ter uma ideia do conjunto e sobretudo perguntar-se sempre pelas condições de compatibilidade de lógicas distintas. (…) O político tem de ser capaz de pensar como se articula o económico com o político, o social, o educativo, o ambiental, o cultural. E ser o agente de articulação de esferas que hoje estão separadas.”
De facto a gestão de crises não é fácil, mas a governação para o soundbite e para as manchetes dos jornais parece orientar algumas escolhas políticas que dificilmente estão articuladas com as prioridades dos portugueses. E isto piora quando o próprio Primeiro Ministro assume, em linguagem carroceira e apenas em privado, o que pensa sobre uma classe profissional sobre a qual há apenas dois meses qualificava de heróis e a quem dava o prémio de poderem ver jogos de futebol pela televisão.
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