Lares e Covid: um filme de terror global

O jornalista Filipe Santos Costa assina a newsletter "Novo normal", e esta semana analisa o impacto da pandemia Covid-19 nos lares. Em Portugal e no mundo.

O diretor-geral da Organização Mundial de Saúde classificou esta semana como “bancarrota moral” o que se está a passar nos lares de idosos por todo o mundo. “Aceitar que a morte dos idosos não é tão importante é a maior baixeza moral”, afirmou Tedros Adhanom Ghebreyesus. A OMS há muito que vem alertando para a “tragédia humana inimaginável” da Covid-19 nos lares de idosos – começou por ser assim na Europa, e repetiu-se por todo o mundo.

Portugal não foi exceção, e a morte de 16 utentes do lar de Reguengos de Monsaraz (mais uma funcionária e uma pessoa da comunidade local) ficou como o exemplo mais dramático da falta de condições em que muitos idosos vivem, e da incapacidade de muitas dessas estruturas residenciais para lidar com uma pandemia para a qual não estavam preparadas.

No início de agosto, ao mesmo tempo que o país se chocava com a maior tragédia em lares portugueses até à data – que rapidamente se transformou numa guerra política -, um drama de dimensão semelhante decorria longe dos holofotes num lar “de luxo” do grupo Montepio, no Porto. Desse surto, detetado há um mês, só esta semana houve notícia: mas estas mortes, também 16, tiveram muito menos impacto mediático.

O facto de não haver, neste caso, um relatório explosivo da Ordem dos Médicos, talvez explique a diferença. Porém, estamos perante uma taxa de letalidade entre utentes bastante maior do que em Reguengos, e inédita em Portugal: morreram 55% dos 29 utentes infetados na unidade privada do Porto (em Reguengos, a taxa de letalidade entre os 80 utentes infetados foi de 20%). O Público dá conta do secretismo com que foi tratado o surto do lar “de luxo” do Porto, e o contraste com o lar “pobre” do Alentejo não podia ser maior.

Mas um e outro formam um mesmo quadro, que é complexo e difícil de ver em toda a sua extensão. O caso do Porto demonstrou, desde logo, a dificuldade de travar este vírus, e as suas piores consequências, quando entra num lar de idosos – mesmo sendo um lar “de luxo”, supostamente com as melhores condições e os melhores cuidados possíveis (o facto de cada utente desse lar ter quarto e casa de banho privativos explica que menos de um terço dos utentes tenha sido contagiado, enquanto em Reguengos foram quase todos – essa também é uma diferença que deve ser frisada).

Sabe-se que este é um vírus mais mortífero para os mais velhos, e para quem já tem outras patologias, e que se propaga mais em áreas fechadas e densamente povoadas – velhos, doentes, fechados, próximos uns dos outros… é a descrição da realidade dos lares de idosos. Aqui, em Espanha, no Reino Unido ou no Canadá. Governados por partidos de esquerda, de centro ou de direita. Com redes de lares mais públicas, mistas, mais privadas ou exclusivamente privadas (como é o caso em Portugal). E por isso se ouvem apelos, em muitas línguas, para se repensar a forma como as sociedades tratam os mais velhos.

Por cá, uma das razões de indignação nacional foi a declaração da ministra Ana Mendes Godinho, numa entrevista pouco feliz ao Expresso, dizendo que “a dimensão dos surtos não é demasiado grande em termos de proporção”. E comparou o que se está a passar em Portugal com a situação noutros países. O facto do título do Expresso ter omitido as palavras “em termos de proporção” empolou o escândalo. Falar de mortes com números pode ser politicamente incorreto e até parecer insensível. Mas, se foi o número de mortos e infetados que causou alarme, é razoável analisar os números com algum detalhe.

Os dados confirmam o que disse a governante. Até quinta-feira passada:

  • Morreram vítimas da Covid 716 portugueses em lares
    o que corresponde a 39% do total de vítimas por coronavírus em Portugal
  • A taxa de mortalidade é de 0,7% (residem 99.234 pessoas nos lares portugueses)

Trinta e nove por cento é exatamente a média da Alemanha, e abaixo da generalidade dos países com que Portugal gosta de se comparar. A começar já aqui ao lado. Em Espanha, segundo dados desta semana, as mortes de idosos nos lares serão 68% do total de falecimentos por Covid no país. Em França, as mortes nos lares representam metade das vítimas por coronavírus.

Eis a comparação entre Portugal e outros países, na percentagem de vítimas de Covid que estavam em lares (dados recolhidos essencialmente no Eurosurveillance e no International Long Term Care Policy Network):

  • Portugal: 39%
  • Alemanha: 39%
  • Espanha: 68%
  • França: 49%
  • Áustria: 34%
  • Bélgica: 64%
  • Dinamarca: 35%
  • Finlândia: 45%
  • Irlanda: 63%
  • Noruega: 59%
  • Suécia: 47%
  • Inglaterra e Gales: 41%
  • EUA: 45%
  • Canadá: 85%
  • Austrália: 31%

(Não encontra Itália nesta lista porque não há dados discriminados sobre a mortalidade nos lares italianos.)

Casas de terror

A situação de Espanha destaca-se no panorama europeu, embora a recolha de dados deixe muito a desejar. Durante a pandemia morreram mais de 27 mil idosos internados em lares espanhóis, dos quais cerca de 19 mil foram diagnosticadas ou tinham sintomas de Covid. Num total nacional de mais de 29 mil vítimas mortais, os lares contribuíram com 65% a 68% dessa cifra.

Os relatos que chegam do país vizinho são, desde o início da pandemia, de puro terror. Houve lares onde as Forças Armadas encontraram idosos mortos lado a lado com outros que mal viviam, doentes, subnutridos e sem assistência básica.

Alguns dos problemas que a Ordem dos Médicos apontou em Reguengos foram identificados, de forma generalizada, em centenas de lares espanhóis. Lá, o relatório arrasador foi feito pelos Médicos Sem Fronteiras, que foram chamados a prestar assistência em quinhentas unidades sem capacidade de enfrentar o pico da crise.

Embora com uma extensão muito maior do que noutros países, os problemas identificados pelos MSF nas residências de idosos espanholas são comuns: falta de condições das instalações; escassez de pessoal de apoio e de recursos financeiros e materiais, como testes e equipamentos de proteção individual; falta de assistência médica; ausência de protocolos e planos de contingência; desconhecimento e impreparação dos funcionários; descoordenação entre vários níveis de autoridades e entre as autoridades e os proprietários dos lares. Para além, claro, da ignorância sobre o comportamento do vírus, sobretudo nos primeiros tempos, quando ainda se desconhecia a sua perigosidade em casos assintomáticos.

Em maior ou menor grau, estes são os problemas apontados por todo o mundo – em duas palavras, escassez e impreparação. Mas também há casos de pura irresponsabilidade, inconsciência e desumanidade.

No Canadá, na província do Quebéc, a Residência Herron tornou-se sinónimo de negligência criminosa quando se soube que os funcionários e enfermeiras fugiram, abandonando mais de uma centena de utentes à sua sorte. Resultado: 51 mortes. O relato dos contactos entre a filha de uma das utentes e a sua mãe, na primeira noite em que não havia ninguém para apoiar e deitar os idosos, parece o guião de um daqueles filmes de terror em que um vírus aniquila a humanidade.

  • “Os pacientes tiveram o primeiro indício de que se passava algo de errado na noite de 28 de março. Pela rotina normal do Herron, o pessoal começava a preparar os residentes para se deitarem por volta das 19h30. Nessa noite, Norma Christie, 92 anos, estava sentada na sua cadeira de rodas à espera que uma assistente a pusesse na cama. Esperou ansiosamente por mais três horas e meia, até que ligou à filha, Karen Seiler.
  • ‘Não percebo, ainda estou na minha cadeira de rodas’, disse à filha, por telefone, depois das onze da noite. (…)
  • Entretanto, Christie dirigiu a cadeira de rodas até ao corredor e, para sua consternação, viu os utentes a andar por ali, sem ninguém a tomar conta deles, conta Seiler.”

Por volta da uma da manhã as autoridades foram avisadas. “Meia hora depois, a polícia ligou a Seiler informando que tinha visitado a residência e falado com um dos poucos funcionários que lá estavam, que prometeu ajudar Christie a ir para a cama”…

Quando as autoridades finalmente se deram conta do que se estava a passar, o primeiro balanço foi de 31 mortos. O número foi subindo até 51. O lar passou para controlo das autoridades públicas, com apoio dos militares, e cada um desses óbitos está em investigação judicial. A acusação de homicídio por negligência, entre outras, é o fecho mais previsível.

Centenas de investigações judiciais

Este que é apenas um de muitos processos judiciais entretanto abertos no Canadá contra proprietários de lares e contra entidades públicas que tutelam a segurança social e o sistema de saúde. As incongruências em vários relatos oficiais não ajudaram à confiança nas autoridades. Um relatório das Forças Armadas do Canadá relata o horror e o nível de negligência que os militares testemunharam quando começaram a ser chamados para salvar centenas de idosos institucionalizados.

Também em Espanha há investigações judiciais em catadupa. Só em Madrid, a região mais flagelada, há quase seis mil mortos em cerca de 500 lares, com um deles a registar mais de 80 óbitos. Há residências onde faleceu mais de 30% do total de utentes.

A Fiscalia General (equivalente à nossa PGR) já tinha esta semana mais de trezentas investigações abertas para apurar responsabilidades na resposta dos lares à pandemia. E está em curso uma mega-queixa, em nome de mais de três mil familiares de idosos falecidos, contra o Governo espanhol, acusado de homicídio por negligência na gestão desta crise sanitária.

Em França, é tudo parecido: lares mal preparados, com falta estrutural de recursos humanos, tornados ainda mais escassos conforme os funcionários e pessoal de saúde iam ficando doentes. E muita, muita, falta de informação, de formação e de meios. Um caso em particular destacou-se nos noticiários franceses – o do lar Rosemontoise, onde os idosos ficaram à sua sorte, obrigando, também neste caso, a que as autoridades assumissem a gestão da unidade. O relatório dos administradores nomeados pelo Estado é “assustador”, segundo o Le Monde.

Este foi o primeiro caso nos lares de França a motivar uma investigação criminal. Mas muitas mais dezenas estão em processo preliminar. “Se quer saber o que não se deve fazer, está aqui”, disse o advogado que representa familiares de alguns dos 30 idosos que morreram nessa residência. O alerta de vírus foi tardio, e mesmo depois de feito, “era proibido usar máscara protetora, para evitar qualquer situação de psicose dentro do estabelecimento”, conta o Le Monde. E os funcionários que estavam de baixa foram chamados ao trabalho antes do fim da quarentena.

“Atirados aos lobos”

No Reino Unido, onde quase 20 mil pessoas morreram em lares de idosos entre 2 de março e 12 de junho, a primeira investigação foi desencadeada, não pela Justiça, mas pelo Parlamento. O relatório parlamentar concluiu que os idosos dos lares foram “atirados aos lobos” durante a primeira vaga da pandemia.

A atuação do Governo de Boris Johnson foi desfeita pelos relatores, que lhe apontaram falta de liderança, de responsabilização e de transparência na missão de guiar e ajudar os lares a lidar com a Covid-19.

Um dos problemas identificados verifica-se em boa parte dos países ocidentais (e em Portugal também): as responsabilidade repartidas entre os organismos da Segurança Social e da Saúde, e a falta de coordenação e liderança que daí resulta. Outro: o crónico subfinanciamento das instituições do setor social. E mais outro: o adiamento, sucessivo, e há décadas, das reformas necessárias no setor social, seja no modelo conceptual, seja nas infraestruturas, equipamentos ou recursos humanos.

Incidência a baixar em Portugal

A primeira prioridade é estabilizar a situação nos lares. Antes de mais, travando a entrada do vírus — um estudo francês indica que o isolamento voluntário dos funcionários dentro dos lares é uma forma eficaz de proteger os utentes. Faz sentido: o vírus não entra apenas com as visitas dos familiares, mas também levado pelos trabalhadores. A organização de equipas em casulo, rendendo os funcionários de duas em duas semanas, fez baixar drasticamente a taxa de infeção. Em simultâneo, assegurar resposta pronta, com meios humanos, material e procedimentos adequados.

Em Portugal, a incidência de casos em lares tem baixado consistentemente. Na primeira quinzena de abril havia 365 lares com casos positivos, um mês depois eram 346, em junho eram 245, na primeira quinzena de julho eram 153, passado mais um mês eram 72, e esta semana eram 63 as estruturas residenciais para idosos com casos de Covid confirmados. Este curva descendente é comum à generalidade dos países ocidentais, conforme há mais know-how, mais equipamentos de proteção e mais acesso a testes.

Na quinta-feira passada só 2,5% dos 2526 lares de idosos existentes em Portugal tinha casos de Covid positivo. Nestes 63 lares havia 577 idosos infetados, e 267 aguardavam resultados. Destes, 87 estavam internados em hospital, e os restantes em isolamento nos respetivos lares.

Mil instituições já pediram ajuda ao Estado para colocação de funcionários – seja para reforço de pessoal, seja para substituição de funcionários que entretanto foram infetados. Desde o início da pandemia, a Segurança Social já aprovou candidaturas para a colocação de quase sete mil pessoas em instituições do setor social, a maioria dos quais para apoio a idosos – o objetivo é até ao fim do ano colocar 15 mil pessoas, preventivamente, antes de os surtos acontecerem.

Na entrevista que fiz esta semana ao secretário de Estado-Adjunto do primeiro-ministro, este elenca as medidas já postas em prática pelo Governo no apoio aos estabelecimentos residenciais para idosos. Pode ouvir aqui (a partir dos 9 minutos) – a lista é longa, e propositadamente não a interrompi. Entre outras medidas, o financiamento do Estado para o setor social subiu 5,5% no Orçamento suplementar, o governo já entregou mais de 1,3 milhões de equipamentos de proteção individual, há os apoios ao nível de recursos humanos e aumentou a fiscalização – só no mês de agosto foram feitas mais de mil visitas a lares. Ontem, arrancaram as brigadas de intervenção rápida distritais para resposta imediata aos surtos nos lares.

E os resultados? Tiago Antunes diz, por outras palavras, o mesmo que disse a ministra Ana Mendes Godinho: “Tenho algum pudor em fazer comparações com números de mortes, mas de facto não comparamos mal, nas estatísticas, com o que se passou noutros países. Não houve mais mortalidade em Portugal do que noutros países. Pelo contrário.”

Dois casos exemplares

A outra prioridade é repensar, não apenas o modelo dos lares de idosos, mas a forma como a sociedade encara o envelhecimento. O que é tanto mais importante em países com populações envelhecidas, como é o caso de Portugal (terceiro país da UE com índice de envelhecimento mais elevado, segundo a Pordata).

Como diz o presidente da Sociedade Espanhola de Geriatria, “no futuro não devíamos ter lares de idosos”. “Só 4% das pessoas que vivem em lares de idosos querem lá estar. Temos de recusar a ideia de que só nos lares se pode dar atenção a pessoas com dependência. Isto passa por potenciar imenso a atenção domiciliária, os centros de dia, as casas com serviços, e tudo o que seja possível para retardar até ao limite a necessidade de ir para um lar.”

Mas este seria assunto para todo um outro Novo Normal (é provável que veja a ser mesmo).

Deixo, para terminar, dois casos exemplares. Hong Kong e Japão. Esta reportagem da Atlantic, para além de mostrar como os Estados Unidos se batem com problemas muito semelhantes aos europeus, analisa como Hong Kong respondeu à pandemia que teve origem ali ao lado, na China continental.

Antes de mais, aprendeu a lição da epidemia de SARS, em 2003. Desde então, todos os lares de idosos do território têm de ter uma pessoa responsável pelo controlo de infeções, que recebe formação oficial específica. E todos os lares são obrigados a armazenar máscaras e equipamentos de proteção individual (EPI) para um mês. Quando a Covid-19 chegou ao território, nunca faltaram EPI nos lares. Mais: todas as visitas foram suspensas, assim como todas as saídas de utentes que não fossem urgentes e inadiável (incluindo idas ao hospital). Os funcionários dos lares têm formação permanente sobre uso de EPI e cuidados sanitários – e ao primeiro sintoma, eram isolados dos utentes.

O Japão conseguiu fazer mais ou menos o mesmo, numa população e num território bastante maiores. O Washington Post conta como. O Japão tem a população mais envelhecida do mundo (lidera a tabela em que Portugal surge em quarto lugar), e 1,7% dos japoneses vive em lares (ou seja, mais de 2 milhões de utentes). Porém, apenas 14% das mortes por Covid aconteceram em lares de idosos (num total nacional de pouco mais que 1300 mortes).

Como? Antes de mais, por razões culturais: uma sociedade que dá muita atenção aos mais velhos, que tem altos níveis de higiene e uma tradição de prevenção de infeções em residências de idosos. Nos lares, os protocolos são rigorosos e o controlo estatal é muito rígido, como reflexo dessa cultura de cuidado com os idosos. As normas de higienização e desinfeção foram impostas desde muito cedo nesta crise, bem como o controlo de temperatura e o reforço geral de limpeza. Desde o início da epidemia as visitas de familiares foram suspensas, e permitidas apenas para utentes em final de vida.

A dieta tradicional japonesa, com poucas gorduras, também pode ter ajudado – há menos diabetes e menos obesidade do que no ocidente, reduzindo outro fator de risco acrescido para os idosos.

Numa guerra sem quartel, todos os pormenores contam.

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