Estratégia contra a Corrupção – Uma desilusão para os extremistas
É verdade que os mais extremistas acham sempre que se resolve tudo com “mais sangue” e que os crimes patrimoniais devem ser punidos como se fossem homicídios ou atos de pedofilia.
Foi recentemente divulgado o documento com as linhas mestras da estratégia nacional de combate à corrupção 2020-2024.
Dentro do extremismo a que muitas vezes assistimos quando se fala de corrupção em Portugal e que poderia levar a soluções radicais, desproporcionais e manifestamente inconstitucionais, parece-me que este plano (que ainda é só isso) consegue aguentar a pressão e, no contexto atual, se devidamente executado, contempla um exercício equilibrado para melhorar o nosso sistema no sentido de dissuadir as práticas corruptivas que, obviamente, distorcem a democracia e a vida em sociedade.
Em primeiro lugar, não se pode ter uma Estratégia sem se conhecer a realidade dos factos que, normalmente, é mais “científica” do que a espuma vazia das perceções. Ora, este documento ajuda – com factos – a conhecermos a realidade. E analisar a realidade com dados objetivos permite desfazer alguns mitos como este: que em Portugal não existem mecanismos legais e meios de combate à corrupção ou que não se investiga este tipo de crimes. Esse é o mito que dá muito jeito a alguns sindicatos judiciais dentro da sua estratégia de ganhar poder e a políticos antissistema que querem ganhar popularidade pelo caminho mais fácil e que fazem da palavra “corrupção” o centro do seu discurso. Para estes, os factos não interessam.
O que interessa é a perceção e a melhor maneira de criar uma perceção negativa sobre o nosso país é evitar os factos e promover uma espécie de alarido ultra adjetivado e genérico sobre o tema. Portanto, “todos são corruptos”, “tudo é corrupção”, todos os problemas do país têm origem na “corrupção”, praticamente não há políticos nem empresários sérios e não há leis nem tribunais para punir a corrupção… Enfim, toda uma panóplia de várias meias verdades e mentiras que propagandeada, repetidamente, nas redes sociais e Media acaba por ter um relevante impacto na perceção negativa que temos de Portugal.
Ora, no que concerne à corrupção, os factos demonstram que já temos uma longa lista de mecanismos e legislação em vigor desde os anos 90 do século passado e reforçada no novo século que não nos colocam em padrão inferior à dos países com melhores práticas. Aliás, regra geral, temos em vigor toda a legislação produzida pelas organizações internacionais sobre esta matéria. Este documento demonstra também que já temos entidades especializadas na prevenção e combate à corrupção e branqueamento de capitais, na recuperação de ativos e que têm ao seu dispor os mais diversos mecanismos intrusivos sobre os cidadãos, desde um amplo modelo de acesso a informações pessoais e patrimoniais até à suspensão de operações bancárias e congelamento de bens.
Em segundo lugar, esta estratégia contempla algo que me parece elementar: os fenómenos corruptivos movimentam-se, por um lado, na opacidade e burocracia dos órgãos do Estado e, por outro, muitas vezes, numa cultura de tolerância e desculpabilização social destas práticas há muito tempo enraizada na sociedade. Quanto a este último aspeto parece-me que temos vindo a melhorar. A minha geração tem memória dos anos 80 e 90 do século passado em que qualquer multa de trânsito se resolvia com um pequeno suborno e que para se aprovar um projeto numa Câmara seria, provavelmente, necessário um pagamento a alguém. Tudo isso era tolerado e tido como “normal”, infelizmente à semelhança do que ainda sucede em muitos países em vias de desenvolvimento por esse mundo fora. Hoje, felizmente, parece-me que já não é assim em Portugal, mas podemos sempre melhorar. E o primeiro passo para melhorar é através da Educação para a “censura da corrupção”, algo que este plano prevê que seja inserido na polémica disciplina de Cidadania e Desenvolvimento.
Faz-me todo o sentido que a educação para uma nova cultura neste campo seja promovida junto dos mais jovens (obviamente, a partir de uma idade em que já consigam compreender), tal como vem há algum tempo a ser promovida nas empresas, em especial nas multinacionais com os seus Códigos de Conduta, programas de Compliance e ações de formação. A propósito deste ponto, este plano também prevê a necessidade das empresas e setor público acentuarem a implementação de mecanismos de prevenção e deteção da corrupção. Trata-se de algo que que deverá ser generalizado e as empresas poderão ser punidas se não os executarem. Na verdade, é cada vez mais imperioso que as empresas criem e adotem sistemas robustos de Compliance até para a sua proteção jurídica no âmbito criminal, atendendo ao facto de, para além dos danos reputacionais, também já poderem ser responsabilizadas por crimes como corrupção, entre outros.
A existência efetiva destes sistemas acabará por ser a sua maior proteção em caso de demanda penal e não é por acaso que os advogados penalistas têm vindo a alargar a sua atuação para estas realidades preventivas empresariais.
Em terceiro lugar, a Estratégia Nacional pretende instituir algumas alterações no campo da repressão da corrupção. É verdade que os mais extremistas acham sempre que se resolve tudo com “mais sangue” e que os crimes patrimoniais devem ser punidos como se fossem homicídios ou atos de pedofilia, se possível, com penas perpétuas. Felizmente, o nosso sistema penal não é assim e, pelo menos em teoria, mantém uma visão democrática, humanista e equilibrada da justiça penal. Também aqui a Estratégia apresentada não alinha em extremismos e seria muito importante que a prática do sistema judicial também não alinhasse. Infelizmente já se vão assistindo a algumas tendências jurisprudenciais mais próprias de justiça de tabloide do que de justiça de Estado de Direito Democrático.
Neste campo, apesar de algumas pressões em sentido contrário, é um alívio democrático que não contemple os ditos tribunais especializados (um nome mais benévolo que tribunais “especiais”) para julgar crimes de corrupção e que corriam o risco de fazer lembrar os tribunais plenários da ditadura e proibidos pela nossa Constituição. É preciso recordar que a eficácia dos Tribunais não se pode medir apenas pelas condenações. Os Tribunais existem para fazer Justiça e esta acontece, muitas vezes, com a absolvição.
Carimbar ainda mais as pessoas com tribunais especiais/especializados seria acentuar o desequilíbrio que já existe entre a destruição da personalidade de um arguido (muito antes de ser condenado) no espaço público e o seu direito fundamental à presunção de inocência e a um processo justo. Hoje em dia uma pessoa é condenada pelo ”Google” mesmo sem estar oficialmente condenada por nada, pelo que é fundamental que o Estado seja um elemento de racionalidade e não opte por soluções simplistas e radicais num dos pilares base da democracia: a justiça criminal. Coisa diferente é dar aos juízes formação, mecanismos e assessoria técnica para melhor entenderem realidades muitas vezes complexas que surgem no julgamento da criminalidade económico-financeira. Essa já é uma possibilidade prevista na lei e que deverá ser acentuada na prática.
Nota-se também uma preocupação de dinamizar os mecanismos de colaboração premiada sem se chegar a uma delação premiada “à brasileira” cuja prática tem sido especialmente permeável a abusos e tem tido efeitos nefastos no sistema brasileiro. Daí que o que se proponha seja algo diferente: um mecanismo de dispensa de pena (provavelmente excessivo) para quem se retrate e denuncie o crime antes de instaurado o procedimento criminal e um de atenuação de pena para o arguido que colabore ativamente na descoberta da verdade no decurso do processo.
Aliás, o texto da Estratégia refere, expressamente, que “deverá ficar afastada uma configuração do instituto que premeie, através da redução da pena aplicável, quem colabore responsabilizando outro ou outros arguidos”. Seja como for, creio que é aqui que surgem as maiores dúvidas em termos de aplicação prática. Sistemas “premiais” são sempre perigosos se mal aplicados e para funcionarem é fundamental que exista uma cultura judicial decente, transparente e transversal a todos os agentes que evite a corrupção “moral” no interior do próprio sistema que, na minha opinião, pode acontecer quando as pessoas são pressionadas ou mesmo coagidas a “comprarem” a sua liberdade” se denunciarem alguém que as autoridades considerem “mais importante”. É preciso ter especial cuidado com qualquer legislação que se venha a produzir sobre esta matéria.
Algo que me parece bem mais pacífico e útil para uma justiça mais eficaz é a chamada justiça negociada. Ou seja, neste caso não se pede que o arguido seja um “delator” ou sequer que colabore, mas que possa ter outras opções para a sua própria situação que não passem forçosamente pela necessidade de um julgamento. Nesse sentido, é uma boa notícia que, por um lado, se preveja o alargamento do âmbito de aplicação do instituto da suspensão provisória e, por outro, a possibilidade de um arguido celebrar um acordo sobre a sua pena, na fase de julgamento, assente na confissão livre e sem reservas dos factos que lhe são imputados.
Por fim, destaca-se o desígnio político de reduzir os chamados “megaprocessos” alargando-se a possibilidade legal de separação de processos. É evidente que os “megaprocessos” são um flagelo quase ingerível para todos os intervenientes nos mesmos, mas será possível reduzi-los de uma forma “artificial” como a que se propõe sem mudar estruturalmente o modelo de processo penal vigente? Tenho sérias dúvidas.
Como é evidente, o problema da corrupção não se resolve com um documento teórico de 78 páginas como o que agora foi apresentado. Para os que vivem politicamente da promoção da “perceção” da corrupção, qualquer plano enquadrado nos limites de uma justiça democrática será sempre insuficiente. Mas já seria alguma coisa que houvesse uma consensualização entre o sistema político moderado e o sistema judicial para implementação de uma Estratégia de longo prazo neste campo que permita um justo equilíbrio entre prevenção, eficácia e direitos fundamentais dos cidadãos.
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