O futuro da auditoria

O auditor é hoje um especialista de um determinado ramo profissional, que vai do ramo financeiro ao tecnológico e ambiental. Numa empresa há múltiplos auditores, internos e externos.

A fraude empresarial está novamente na ordem do dia. O número de casos tem vindo a aumentar e com a crise económica a intensificar-se é natural que novas situações venham a ser desvendadas. A maré está baixa e, como diz Warren Buffett na sua linguagem tipicamente folclórica, é nestas alturas que se vê quem foi ao mar sem calções. O recente caso envolvendo a empresa alemã Wirecard, uma fraude de dois mil milhões de euros desvendada pelos jornalistas do Financial Times, foi apenas mais um episódio numa já longa lista de fraudes de grande dimensão. Mas numa altura em que tanto se fala de responsabilidade social das empresas, o recente episódio tem motivado uma renovada e bem-vinda discussão sobre auditoria no mundo empresarial.

Note-se que eu escrevi “auditoria” e não “auditoria financeira”. Fi-lo de forma propositada. Esta é, de resto, a primeira discussão que gostaria de trazer a este artigo. Quando hoje se fala de auditoria nas empresas não se fala necessariamente do auditor financeiro, na pessoa do contabilista certificado ou do revisor oficial de contas. A função de auditoria não se circunscreve à contabilidade. Esta é a primeira falácia que deve ser desmontada.

O auditor é hoje, cada vez mais, um especialista de um determinado ramo profissional, que vai desde o ramo financeiro ao tecnológico ao ambiental e ao processual, etc. Por outras palavras, numa empresa, sobretudo nas mais profissionalizadas, há múltiplos auditores – alguns dos próprios quadros, outros externos.

Quanto à auditoria financeira, trata-se da parte mais visível da temática. Por duas razões. Primeiro, porque as auditorias financeiras são realizadas para consumo não só de accionistas ou sócios, mas também de fornecedores, funcionários, clientes e até do próprio Estado. Segundo, porque quando há uma situação de fraude é sobre o auditor financeiro que habitualmente recai o principal ónus de responsabilização. A informação financeira acaba por constituir-se assim como o ponto fulcral de toda a auditoria e também como ponto de encontro de informação não financeira. Os relatórios de sustentabilidade exigidos às sociedades cotadas são disso exemplo.

Qual é então o papel da auditoria? Em termos gerais, trata-se de uma função que visa a partilha de informação com os diversos agentes económicos junto dos quais a empresa se relaciona. Em termos mais específicos, é o instrumento através do qual se minimiza o custo de aquisição de informação sobre determinada empresa, a fim da redução do custo de financiamento da mesma, da captação de recursos humanos pela mesma, entre outras decorrências financeiras e não financeiras.

Do mesmo modo que os partidos políticos facultam informação aos eleitores para que estes facilmente sejam levados ao encontro das suas ideias (e, infelizmente, muitas vezes levados também ao encontro das próprias secções de voto…), também as empresas partilham a sua informação na expectativa de retirarem daí o devido proveito.

Quem detém então o incentivo à publicação de informação fidedigna? No caso das empresas, o grupo mais interessado na publicação de boa informação, rigorosa e material, são os sócios ou accionistas que contribuem para o chamado capital permanente de uma sociedade. Voltamos à teoria de agência. Os gestores são os agentes, os sócios são os principais. E aqui está um problema que frequentemente ocorre nas empresas, sobretudo nas de maior complexidade e dimensão, que é o facto de os sócios, ou os seus representantes quando as participações são detidas através de terceiros, não prestarem suficiente atenção à informação emanada das empresas. Só têm de queixar-se de si mesmos. Todavia, há mecanismos que podem ser pensados de forma a atenuar estes riscos autoinfligidos.

No caso do problema de agência referido anteriormente, a solução está em reduzir a distância entre auditores e sócios, entre auditores e demais “stakeholders”. Assim, do mesmo modo que hoje faz parte das boas práticas de governo societário sujeitar a política de remuneração dos executivos ao crivo da Assembleia Geral, também deveria ser instituída uma recomendação no sentido de permitir aos sócios a participação na identificação dos riscos inerentes à actividade das empresas. Uma proposta neste sentido (ver o “Brydon Report”, publicado no Reino Unido no final de 2019) passa por partilhar com os sócios, em momento prévio à Assembleia Geral, uma versão também ela prévia do conjunto de riscos do negócio que habitualmente acompanha a prestação anual de contas. Nas empresas dotadas de uma comissão de auditoria ou de supervisão, ficaria ao cuidado destas decidirem quais as recomendações dos sócios a incluir na versão final e, em caso de não inclusão, o porquê das suas opções finais.

Outra proposta, no sentido de aproximar os auditores dos utilizadores finais dos relatórios de auditoria, passa por comunicar directamente com outros “stakeholders”, que não apenas os “shareholders”, tais como funcionários, fornecedores, credores, ou o Estado através da auditoria.

Isso significa a difusão de informação adicional sobre práticas salariais, prazos médios de pagamento, utilização de “blockchain” no processamento de operações de crédito, e a desagregação geográfica dos impostos pagos pelas empresas. Na prática, esta transparência adicional teria duas vantagens.

  1. A primeira seria a produção de informação circunscrita ou especialmente dirigida ao público-alvo, que fosse consumida pelos verdadeiros consumidores da informação, em vez de relatórios infindáveis e imperscrutáveis.
  2. A segunda seria a fácil refutação de informação que viesse a ser falsa – a “falsifiability” popperiana aplicada à gestão.

A fraude da Wirecard surpreendeu pela aparente simplicidade dos meios envolvidos. Do que se lê na imprensa, uma simples circularização de extractos bancários, realizada de forma directa entre os bancos em que a empresa dizia ter depósitos e a auditora externa, teria permitido identificar o problema. Portanto, haverá lições relativamente básicas a retirar do caso. Mas há outras situações em que, mais importante do que uma lógica de “inputs” e “outputs” – pedidos e relatórios produzidos –, importará mais, do ponto de vista da regulação, a criação de bons processos e resultados esperados – a lógica de “outcomes”. A aproximação entre auditores e sócios, mas também entre auditores e outros agentes económicos directamente relacionados com as empresas, parece-me meritório e merecedor da atenção dos reguladores.

Há considerações de custo-benefício que a regulação não pode ignorar. O número de cotadas tem vindo a diminuir e mesmo que determinados momentos, como aqueles descritos antes, fossem incluídos nas leis a sua utilização dependeria sempre dos destinatários finais. Veja-se o exemplo, ocorrido há dias, de uma alteração promovida pela TAP a um contrato obrigacionista, no âmbito da qual foi solicitada aos obrigacionistas a eleição de um representante comum e que foi ignorada por estes. Se estes obrigacionistas vierem um dia a arrepender-se, só poderão queixar-se de si mesmos.

Por outras palavras, alguns momentos (mínimos) para a partilha e deliberação podem e devem ser instituídos através da regulação, mas a obrigatoriedade de um qualquer “output”, por decreto legal, deve ser muito parcimoniosa. A regulação e a auditoria podem moldar os sistemas de incentivos, mas não se substituem aos interessados finais.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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