Uma economia a 90 por cento
A economia portuguesa não deverá recuperar o nível de 2019 antes do final de 2023. A economia a 90 por cento vai tornar duradouras algumas transformações recentes.
Nos últimos meses várias publicações têm procurado qualificar esta nova economia, este novo normal pandémico, sob um chavão ilustrativo. A revista “The Economist” chamou-lhe uma economia a 90 por cento. Parece-me uma boa ilustração. A imagem assenta na ideia de que durante algum tempo vamos ter uma economia debilitada no seu potencial produtivo, na qual o PIB contrairá no imediato 10 por cento e em que outras variáveis macroeconómicas, como o défice e o desemprego também dispararão para a fasquia dos 10 por cento (do PIB e da população activa, respectivamente). A recuperação não será imediata, pelo contrário, tardará, e também não será em forma de V. Será numa espécie de L ascendente ou, como também se tem especulado mais recentemente, em forma de K – uma economia na qual alguns sectores recuperarão rapidamente enquanto outros não sobreviverão de todo.
No caso de Portugal, a exemplo de outros países europeus, observam-se indicações contraditórias. As medidas de emergência introduzidas pelo Governo – sobretudo o “lay-off” simplificado, as garantias públicas às linhas de financiamento e as moratórias de vários tipos – contiveram até ao momento parte do custo social da crise, mas não têm aliviado a debilidade que se sente na base da economia.
Outra coisa não seria de esperar perante a artificialidade de alguns efeitos produzidos pela intervenção pública. Mas não obstante o intervencionismo estatal, na economia real os números são esclarecedores. A leitura mais recente do índice de volume de negócios total da economia portuguesa, publicado pelo INE, exibe uma contração de 19% face ao período homólogo. Ao mesmo tempo, a inflação subjacente, isto é, excluindo a componente de bens energéticos e alimentares, é negativa (-1%). Finalmente, a receita acumulada do IVA até Agosto vai revelando uma redução de 11% face ao período homólogo.
Temos em Portugal uma economia muito frágil, em pior estado do que o estado em que parece estar porque as variáveis macroeconómicas estão dessincronizadas. O desemprego, para salvação política do Governo, está menos mal do que se esperaria, devido aos “layoffs” e às restrições relativas aos despedimentos que lhes estão associadas (que as empresas tendem a aceitar na medida em que muitas não possuem liquidez para pagar indemnizações por despedimento).
O défice está menos mal porque a despesa pública está ela própria a crescer menos do que se esperava, compensando desta forma a perda de receitas fiscais que, estas sim, estão a registar perdas mais gravosas do que se previa. Assim, contas feitas, no final do ano é bem possível que este conjunto de indicadores, habitualmente alinhado entre si, continue a apresentar-se desconjuntado. O défice ficará provavelmente próximo da estimativa do Governo. Já a taxa de desemprego e a recessão ficarão abaixo e acima do esperado, respectivamente.
A boia de salvação são os fundos europeus, como tem sucedido nos últimos trinta anos, para alegria de muita gente. Nalguns casos as pessoas agradecem genuinamente a oportunidade. Noutros, salivam a oportunidade. Mas, desta feita, como ponto de partida não podemos ignorar a dívida pública. Ora, no final de Agosto, segundo dados do IGCP, acumulávamos já uma dívida pública de 262 mil milhões de euros, estimando-se no final do ano um valor próximo de 270 mil milhões de euros (cerca de 135% do PIB, ou, apresentado de outra forma, cerca de 54 mil euros por cada cidadão em idade activa).
Neste contexto, é sensata a decisão do Governo em utilizar para já apenas as subvenções a fundo perdido do programa de recuperação e resiliência, adiando a utilização de dívida (com excepção da dívida prevista ao abrigo de um outro programa da União Europeia, o SURE, destinado a financiar as despesas incorridas com o “layoff” e algumas outras relacionadas com a saúde).
A economia portuguesa não deverá recuperar o nível de 2019 antes do final de 2023. De acordo com as projecções do Conselho de Finanças Públicas (CFP), a economia nacional contrairá este ano ligeiramente mais do que 9%, seguindo-se uma recuperação em 2021 de sensivelmente 5%, em 2022 de 3% e em 2023 de 2%. Mas, globalmente, segundo o mesmo CFP, tratar-se-á de uma recuperação acompanhada da manutenção de défice orçamental até pelo menos 2024. Ademais, teremos em 2021 um calendário especialmente exigente em matéria de amortizações de dívida pública vincenda, ou seja, mais de 20 mil milhões de euros de dívida pública que terá de refinanciada. A relutância do Governo em acrescentar à dívida pública é, pois, avisada, numa altura em que a recuperação apontada para 2021 começa a parecer algo optimista.
Todavia, a relutância do Governo em utilizar a dívida disponibilizada pela União Europeia a Portugal em condições benévolas leva-me também a pensar noutros tipos de riscos, designadamente naqueles que decorrem da centralização estatal de todo o processo de rateio e selecção de projectos elegíveis. Primeiro, o risco de não existir capacidade de absorção e de execução de tanto dinheiro. Segundo, o risco de não haver capacidade de identificação dos investimentos que permitam a utilização eficiente de todo aquele dinheiro.
É, aliás, na base destas suspeições, a fim de evitar o mau investimento que no passado levou a que a dívida pública de países como Portugal crescesse mais rapidamente do que o PIB, que os ditos frugais tanto têm insistido nos mecanismos de avaliação das propostas avançadas pelos países europeus que vão receber estes dinheiros. Aguardemos, aliás, pela aprovação final do próprio fundo de recuperação e resiliência que, ao contrário do que nos vendem para consumo interno, não está ainda formalmente concretizado.
A aplicação do fundo de recuperação, tudo correndo conforme previsto, estará fortemente manietada pelas próprias prioridades europeias. A margem de manobra de países como Portugal será limitada. Mas, mesmo assim, o que fazer ao dinheiro do qual se prescinde numa primeira fase será sempre uma questão relevante. Assumindo que todos os países quererão maximizar a utilização dos fundos e que esta utilização estará limitada aos parâmetros estabelecidos pela própria Comissão Europeia, os incentivos serão perversos. Ou seja, os incentivos estarão orientados no sentido perverso de, mais cedo ou mais tarde, se esgotar a utilização de todo o dinheiro, entre subvenções e empréstimos, independentemente da eficiência do investimento realizado. A alternativa, a fim de corrigir estes incentivos, seria a introdução de uma figura híbrida, dotando os empréstimos de convertibilidade a fundo perdido mediante a obtenção de critérios de rendibilidade previamente estabelecidos. Outra alternativa seria a redução do programa de empréstimos.
A economia a 90 por cento vai tornar duradouras algumas transformações recentes. A transição digital, acelerada pela pandemia, o teletrabalho e algumas tecnologias que vão alterar determinadas cadeias de valor vieram para ficar.
Neste contexto, o poder político gosta sempre de assumir o protagonismo e a liderança na resposta à crise. Mas ainda que as prioridades da Comissão Europeia me pareçam globalmente acertadas – com excepção do hidrogénio verde e dos campeões nacionais/europeus – a verdadeira liderança, e o incentivo para a mudança, terá de partir do sector privado e da sociedade civil.
Em certos meios existe hoje uma crença excessiva na ideia do “entrepreneurial state”. Todavia, o Estado só pode ser inovador quando os cidadãos que o constituem também o forem. É aqui que reside parte do desafio de Portugal nos próximos anos: esperar que os cidadãos, eles próprios, abracem a inovação e a mudança em vez de as rejeitarem. Numa economia a 90 por cento, o desafio é ainda maior.
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