Um Orçamento de incerteza

A proposta de orçamento para 2021 revela que o Governo aposta no consumo público para puxar pela economia e é possível cumprir a redução do défice, mas tem de correr tudo bem.

O OE 21 é marcado pela pandemia da Covid-19 e pela elevada incerteza económica que vivemos desde março. O Governo aponta para uma quebra do PIB em 2020 inferior ao esperado, resultado de uma estimativa de quebra do consumo privado mais otimista. Para 2021, a previsão de recuperação está em linha com o previsto, mas assente mais no consumo público.

Há três grandes linhas neste OE:

  • O consumo público em 2020 cai 0.3%, quando as estimativas das restantes entidades nacionais e internacionais era de uma subida de 2% a 3%. Ou seja, como o Estado está a gastar mais com a Covid-19, isto é mais uma prova que tudo o resto está simplesmente parado. O efeito estatístico do encerramento dos serviços públicos pode explicar parte da quebra, no 2º trimestre, mas não após esse período, nem explicará a quebra toda.
  • A recuperação para 2021 assentará sobretudo no consumo público e menos no consumo privado, e não no investimento ou na procura externa.
  • As medidas que estão a ser tomadas não estão planeadas para responderem apenas ao período de crise, mas tendem a assumir um efeito estrutural (ou seja, provavelmente manter-se-ão após o período de crise). Isso implica um aumento da despesa corrente primária, um maior volume de dívida pública e uma maior estatização. Por decisão do governo e dos seus parceiros, vamos sair desta crise com um Estado ainda mais omnipresente, pesado, ineficiente e consumindo cada vez mais recursos.

Cenário macroeconómico

A quebra do PIB real esperada pelo Governo para 2020 é de 8.5%, o que contrasta com as previsões das restantes entidades (nacionais e internacionais, que apontam para uma quebra em torno dos 10%), à exceção da projeção do Banco de Portugal, que aponta para uma redução do PIB em torno de 8%. Para se ter uma ideia do que representa uma quebra do PIB de 8.5%, o gráfico abaixo mostra a evolução do crescimento do PIB real entre 2001 e 2020. O ano de maior recessão tinha sido 2012, com uma quebra do PIB de 4%. Assim, o número do Governo (e que pode vir a revelar-se otimista) mostra uma quebra do PIB de mais do dobro da do pior ano da anterior crise. E mostra uma quebra do PIB superior à quebra acumulada do PIB entre 2008 e 2013. Ou seja, 2020 prepara-se para ser pior que o ciclo inteiro da crise anterior.

Crescimento do PIB real

Esta quebra do PIB implica que entre 2001 e 2020 a economia Portuguesa estagnou em termos reais. Se assumirmos uma base 100 para 2001, então o PIB de 2020 valerá 103, ou seja, um crescimento acumulado de duas décadas de 3%, um extraordinário valor médio anual de cerca de 0.1%. O gráfico abaixo mostra como a economia Portuguesa não descola e como cada crise coloca-nos de novo no “ponto de partida” anterior.

Se isto não mostra o falhanço das políticas económicas dos últimos 25 anos, então já não sei o que mais poderá demonstrar.

Evolução do PIB real (2001 = base 100)

(2001= base 100)

Mas para que o PIB caia “apenas” 8.5% em 2020 o Governo conta com uma menor quebra do consumo privado que o estimado pelo Conselho de Finanças Públicas (CFP) (-7.1 do governo versus -8.9 do CFP). Aqui reside a principal fragilidade do cenário do governo. Isto dado que em termos de projeção da quebra das exportações e importações a previsão do governo não diverge das restantes entidades. O governo é até mais pessimista na quebra do investimento (- 7.4 do governo versus -6.8 do CFP).

Curiosamente, o CFP previa um aumento do consumo público em 2020 de 3%, mas o Governo estima uma quebra de -0.3%.

Como fui afirmando nestes últimos 5 anos, a manta orçamental ia revelar-se curta quando fosse preciso atuar perante uma crise. Aqui está a evidência. O Governo sabe que não pode gastar muito (afinal até recusou a componente de empréstimos da “bazuca Europeia” porque a divida pública é muito elevada). E esta é, mais uma, desilusão para os que andaram a apregoar que ia ser a despesa pública a combater a crise.

Para 2021, o Governo prevê uma recuperação de 5.4%, o que não se afasta muito das previsões do BdP e do CFP. Só que em 2021 inverte-se a narrativa. O governo é muito mais pessimista na evolução do consumo privado (+3.9% face aos 7.7 do BdP e aos 6.9 do CFP), mas muito mais expansionista no consumo público que o previsto (+2.4% face aos 0.7% do BdP). Isto porque quer em investimento, quer nas exportações e importações, as previsões do governo para 2021 não se afastam das do BdP e do CFP.

Ou seja, em 2020 a expectativa do Governo está no consumo privado e em 2021 estará no consumo público.

Quanto ao desemprego, subirá de 6.5% em 2019 para 8.7% em 2020. Trata-se de um valor muito abaixo dos 10% a 12% que o CFP e a OCDE preveem, mas acima da previsão do BdP, que é de 7.5%. Em 2021, o governo prevê que o desemprego baixe dos 8.7% para 8.2%, também abaixo das restantes previsões. Mas o gráfico abaixo, que mostra a correlação entre o crescimento real do PIB e o desemprego (uma aproximação simplista à Lei de Okun) entre 1985 e 2021, mostra que 2020 é o ano mais afastado do eixo. Ou seja, para uma quebra de 8.5% do PIB, o desemprego apenas subir 2 p.p. afigura-se otimista.

Por último, o OE2021 refere, no parecer do CFP, que o “hiato do produto” (isto é, a diferença entre o PIB real e o PIB potencial – o PIB com a capacidade plena de utilização dos fatores produtivos), passa de +3.5% para -5.8%. Ou seja, o PIB real estava acima do PIB potencial (efeito do “boom” do imobiliário e do turismo, com o efeito de pressão dos preços) e agora estará substancialmente abaixo, mesmo em 2021 (- 2.4%).

Contas públicas

A redução do défice nominal e do défice estrutural (o défice nominal sem as medidas “one-off”, isto é, as medidas pontuais e sem o efeito do ciclo económico – o hiato do produto que referi antes) que vinha a ser feita desde 2010, embora a ritmos e meios diferentes (já lá iremos), foi agora, naturalmente, interrompida.

De um superavit nominal (sem “one-offs”) de 0.5% em 2019 o défice será (sem “one-offs”) de 4.5% (considerando como “one-offs” 2.8% do PIB, resultantes de 1.7% de medidas relacionadas com a Covid-19 e cerca de 1.1% associados ao Novo Banco e TAP, o que dá um défice nominal de 7.3%).

Quando olhamos para a passagem de um superavit nominal de 0.5% em 2019 para o défice de 7.3%, ou seja, uma deterioração do saldo orçamental em quase 8 p.p., temos, além dos 2.8 de “one-offs”, temos uma perda de receita fiscal e contributiva de 3 p.p., a que se junta um aumento das despesas de capital (+0.5) e das despesas com pessoal (+0.4) e do subsidio de desemprego (+0.2), havendo uma pequena folga dos juros (-0.2).

Mas o que é que os dois gráficos abaixo nos dizem? Que a redução do défice nominal sem “one-offs” entre 2010 e 2015 foi de 6 p.p. (passou de 9% para 3%) e que entre 2016 e 2019 foi de 3,5 p.p. (passou de 3% para um superavit de 0.5%).

E que a redução do défice estrutural foi de 6 p.p. entre 2010 e 2015 (passou de 8% para 2%) e de 1.5 p.p. entre 2016 e 2019 (passou de 2% para 0.5%). Só que o défice nominal vai aumentar cerca de 5.6 p.p. em 2020 e o défice estrutural vai aumentar quase 3 p.p. E as reduções para 2021 serão mínimas. Uma redução de 0.7 no défice nominal sem “one-offs” e de apenas 0.2 no défice estrutural.

 

 

Mas, durante estes últimos quatro anos, fui avisando que a correção do défice nominal e do défice estrutural estava assente sobretudo na política monetária. De facto, entre redução de juros e aumento dos dividendos do BdP foram cerca de 2 p.p do PIB de redução do défice. A que se somarmos um aumento da carga fiscal até 2019 de 0.6 e uma redução do investimento público de 0.3 em 2019 face a 2015, temos que 3 p.p. dos 3.5 de redução do défice resultam desses efeitos.

O que o gráfico abaixo mostra é que sem o efeito dos juros e dos dividendos do BdP (dois fatores muito pouco resultantes da atuação do governo), o défice estrutural tinha-se mantido inalterado, em torno dos 2%, entre 2015 e 2019. E que com o agravamento das contas públicas em 2020 e 2021, sem a poupança de juros (entre 2015 e 2021 os juros passaram de 4.5% do PIB para 2.6%, uma redução de 2 p.p), o défice estrutural estaria em torno de 5% em 2020 e 2021.

Isso também é visível na evolução do saldo primário estrutural (o saldo estrutural sem a componente dos juros). Depois de se reduzir de um défice primário estrutural em torno dos 6% em 2010 para um superavit primário estrutural em torno dos 2.5% em 2015 (uma melhoria de cerca de 8 p.p.), o saldo primário estrutural manteve-se praticamente inalterado entre 2016 e 2019. Agora, reduz-se praticamente a zero, com um ligeiríssimo superavit de 0.1%. E se não fosse os dividendos do BdP e teríamos novamente o pior indicador para a sustentabilidade da divida pública: um défice primário estrutural.

Fica, mais uma vez demonstrado, que a consolidação orçamental dos últimos quatro anos foi totalmente ilusória, sem qualquer fundamento estrutural.

Para 2021, o Governo prevê passar de um défice nominal de 7.3% para 4.3%.

O ponto de partida do défice de 2021 será em torno dos 5.5% (aos 7.3% há que retirar os 2.8% de “one-offs” de 2020 mas somar cerca de 1% PIB em aumento do défice por via das medidas tomadas para 2021, entre as quais o aumento de despesa com pessoal, o efeito demográfico na despesa com pensões e o aumento dos consumos intermédios e do investimento público, conforme o governo refere na página 62-63 do relatório do OE21).

Depois, o Governo tem de contar com cerca de 0.5% de “one-offs” do lado da despesa. Mas conta com um “super prémio” do lado da receita: cerca de mil milhões (0.5% PIB) na recuperação de uma garantia do empréstimo ao Fundo Europeu de Estabilização Financeira e mais uns 1.2 mil milhões dos fundos Europeus ligados à Covid-19, sobretudo o SURE. No total, uma receita extraordinária de cerca de 1% do PIB. Ou seja, os efeitos pontuais permitem ao Governo baixar o défice em cerca de 0.5%.

Pelo que, o efeito do crescimento económico em 2020 foi de uma quebra do PIB nominal de 7% (quebra real de 8.5 mas com um deflator do PIB de 1.5) implicou uma perda de receita fiscal e contributiva de 3 % PIB . Em 2021, o PIB nominal crescerá, na estimativa do governo, cerca de 6.3% (real de 5.4 e um deflator de 0.9), levando a um efeito na receita fiscal de 1.9% do PIB. É possível, mas terá de correr tudo bem, quer nas projeções de crescimento, quer no desemprego.

Mas fica por explicar a questão do Novo Banco. O facto do Fundo de resolução financiar-se diretamente ao mercado não afeta o impacto no défice e na dívida. Ou seja, o reforço do Fundo de Resolução, seja por via de transferência do Estado, seja por empréstimo do Fundo, será sempre considerado no défice e na dívida pública.

Fica a dúvida se esse impacto, de 0.3% a 0.4% do PIB está contemplado nas contas para 2021. Sendo que nem uma palavra se o empréstimo do Fundo de Resolução será feito nas mesmas condições que seria o financiamento da República, nem quanto vai custar a mais.

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