Um Orçamento calculista

O OE2021, em face do seu excessivo enfoque de curto prazo, tentando fazer barragem ao desemprego e às falências, perde de vista aqueles outros desafios de médio prazo.

A proposta de Orçamento do Estado para 2021 (OE2021) confirma a ideia de que o Governo está preocupado com o ciclo político. Não é novidade que os governos passam o tempo a olhar para as sondagens e para as políticas que mais os poderão beneficiar eleitoralmente. Chama-se a isto o “political business cycle” e há muito que é estudado na literatura académica e confirmado pela evidência empírica. O objectivo dos políticos é serem reeleitos. A surpresa neste caso reside no facto de a preocupação do Governo se estar a manifestar tão cedo na legislatura. A pandemia tem muita influência, mas, regra geral, estas preocupações manifestam-se mais no final dos mandatos. Assim, o risco é acabarmos com um exercício que é simultaneamente calculista, do ponto de vista político, e ineficiente, do ponto de vista orçamental.

Portugal encontra-se numa situação macroeconómica muito vulnerável, por isso, aconselhar-se-ia outra abordagem governamental que não apenas uma baseada no calculismo político. Mais ainda: desaconselhar-se-ia uma abordagem que onerasse a despesa pública com mais despesa de natureza permanente. A dívida pública já é altíssima e a melhoria orçamental dos últimos anos foi estruturalmente frágil. São observações que podem ser lidas num relatório publicado há dias pela Comissão Europeia (“Portugal’s Performance after the Macroeconomic Adjustment Programme”). Nele se escreve que a médio prazo os principais desafios em Portugal, para além das contas públicas, estão na baixa produtividade – reflexo sobretudo do desajustamento de qualificações – e nos desafios colocados pela demografia.

Ora, o OE2021, em face do seu excessivo enfoque de curto prazo, tentando fazer barragem ao desemprego e às falências, perde de vista aqueles outros desafios de médio prazo. De facto, numa altura em que a prioridade deveria ser o investimento na transição económica do país, em olhar para o futuro de forma desamedrontada e com noção da realidade que se aproxima, aquilo que o Governo está a priorizar é uma luta inglória e cada vez mais ideológica tendente a um tipo de economia que ficou para trás com a pandemia (e com o salto para a digitalização estimulado por aquela). Ou seja, queira o Governo ou não, há sectores que vão mesmo encolher porque deixaram de ser economicamente viáveis ou porque se vão transformar significativamente. Quanto ao investimento público e aos investimentos estruturantes, há opções acertadas no OE2021, mas outras há que – como o hidrogénio verde – que parecem forçadas. A ver vamos também o grau de execução do investimento público.

Em Portugal faltam as qualificações do futuro. A existência de apoio à formação, ao jeito do que foi feito a partir do plano extraordinário de formação no âmbito do “layoff simplificado”, mas que tivesse outra dimensão e que beneficiasse de algumas modificações de design, deveria ser uma prioridade cimeira. Sobre isto escrevi em “Prolongar o lay-off é errado” (ECO, 3/06), no qual argumentei por um programa reforçado de apoio à qualificação em alternativa aos “lay-off” uma vez terminado o confinamento. Todavia, no OE2021 não se vislumbra que a requalificação e formação profissional, nesta transição económica que atravessamos, seja prioritária. Pelo contrário, observa-se um excessivo recurso a uma lógica de apoio social que, podendo ser razoáveis em alguns casos – mas não em todos –, será desajustado tendo em vista a promoção do “upgrade” de qualificações sem o qual não haverá requalificação da economia.

O problema das qualificações sente-se no sector privado, mas também no sector público. Neste domínio, para além de não ir ao fundo da questão, o Governo estará a criar divisões desnecessárias se insistir em criar barreiras ao ajustamento no sector privado ao mesmo tempo que melhora por decreto as condições no sector público (que, nunca esqueçamos, são pagas pelo sector privado). A capacidade de ajustamento das empresas será sempre uma importante válvula de escape com vista à regeneração económica. É importante ter isto em conta, numa altura em que as condicionantes administrativas sobre as empresas crescem e em que a carga fiscal, ao contrário da economia, continua junto ao nível máximo histórico.

O OE2021 contém um desequilíbrio interno ao exibir despesas correntes que serão superiores às receitas correntes em 1,5 pontos percentuais do PIB. Trata-se de uma imprudência orçamental numa altura em que o défice global vai ser uma faceta das contas públicas até pelo menos 2024 e que facilmente poderá conduzir ao aumento da carga fiscal, já que a despesa corrente com carácter permanente vai continuar a crescer mais do proporcionalmente face à despesa total.

Sobre isto, há um número no OE2021 que diz muito sobre a rigidez do gasto público. Este número encontra-se no quadro 3.2 e traduz o acréscimo de despesa com pensões em 2021 que decorrerá unicamente do aumento das pensões médias e do número de pensionistas: Mais 409 milhões de euros. Convinha, pois, que se evitassem despesas duradouras para além daquelas que o tempo e a estrutura demográfica tratarão de criar.

Uma nota também sobre as necessidades de financiamento do Estado previstas em 2021. No total, considerando o financiamento do défice e a amortização de dívida vincenda, as necessidades brutas de financiamento serão de 56 mil milhões de euros – cerca de 25% do PIB. Além disso, há ainda as responsabilidades contingentes do Estado, designadamente as garantias concedidas pelo Estado a entidades terceiras, no valor de 11 mil milhões de euros. Aqui, o OE2021 pouco diz quanto às linhas de crédito COVID com garantia do Estado. A redução do nível desta garantia seria desejável, porém, seria igualmente desejável que algum nível de garantia permanecesse em vigor até que outro dinamismo no sector bancário e no mercado de capitais fosse visível.

Sectorialmente, a Saúde vai continuar a representar cerca de 12% da despesa pública total, bastante aquém dos 15% exibidos em média nos países da OCDE. Nada de estrutural muda aqui apesar do clamor político em redor da Saúde. Na Educação, o avanço no ensino digital é eclipsado pela ausência de reforma na estrutura burocrática sobre a qual assenta o ensino.

Por actividades, a administração pública continuará a concentrar uma proporção cada vez maior de recursos. Em 2021 as actividades do aparelho do Estado representarão uma despesa de 36 mil milhões de euros, um terço da despesa efectiva (não consolidada), o que corresponderá a um crescimento expressivo face ao primeiro orçamento apresentado por este PS em 2016 no qual as actividades do aparelho do Estado foram orçamentadas em 23 mil milhões de euros. Trata-se de uma evolução que também comprova o crescimento da despesa permanente.

Uma palavra final sobre os fundos europeus e a recapitalização das empresas públicas. Há no discurso do Governo uma sensação de grande expectativa quanto à vinda dos fundos europeus. Percebendo-se a razão pela qual os valores são considerados, a verdade é que não há ainda um acordo formal de libertação de alguns desses fundos. Alguma cautela seria preferível, sobretudo quando esses fundos serão em parte utilizados para financiar o investimento público tão apregoado pelo Governo.

De igual modo, também nas empresas públicas seria preferível não só alguma cautela, mas sobretudo algum resguardo. Pelo andar da carruagem, as responsabilidades contingentes do Estado, designadamente as que forem estabelecidas através das empresas públicas, vão fazer com que a dívida pública se torne ainda mais elevada. Neste domínio, o OE2021 vai criar mais desequilíbrios do que soluções.

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