Uma bomba relógio?

As moratórias estabelecidas até ao momento abrangem operações de crédito no montante global de 35 mil milhões de euros. É uma pipa de massa, como diria o outro.

Na proposta de Orçamento de Estado para 2021 está ausente um dos principais riscos macroeconómicos que a economia portuguesa enfrentará no próximo ano: o risco bancário, depois de levantadas as moratórias de crédito instituídas pelo Governo.

De acordo com o Banco de Portugal, entre Março e Agosto foram concedidas quase 727 mil moratórias, considerando o universo global de clientes particulares e de empresas. Quanto ao valor das moratórias, segundo informações recentes do Governo, as moratórias estabelecidas até ao momento abrangem operações de crédito no montante global de 35 mil milhões de euros, sendo que, ainda de acordo com o Governo, o montante efectivamente suspenso até Março do próximo ano será de 10 mil milhões de euros. É uma pipa de massa, como diria o outro, que, entretanto, tenderá a aumentar porque o dito regime de moratória, ainda que com adaptações, foi prolongado até Setembro de 2021.

Gradualmente, depois de um longo silêncio, os bancos vão dando sinais de desconforto, a começar pelo Banco de Portugal para quem “as moratórias não são uma panaceia”. Também as agências de “rating” vão dando os primeiros avisos ao Governo. Sobre isto, ainda há dias, a DBRS avisava que entre os bancos analisados em Portugal as moratórias abrangerão cerca de 22% do total de crédito concedido pelos mesmos. Os bancos portugueses estarão assim no topo da lista na Europa, sugerindo a DBRS que o sector bancário nacional como um todo poderá ser o mais exposto às moratórias de crédito implementadas na Europa, seguindo-se os bancos irlandeses que estarão expostos às moratórias em 13% do crédito total concedido. Neste contexto, e com a economia a desiludir os que dela esperavam uma mais rápida recuperação, é caso para estar apreensivo. O Governo julga-se capaz de dominar o ciclo económico, mas a história sugere que acabará a provar o seu próprio veneno.

As moratórias de crédito, apesar da boa intenção com que foram criadas, enfermam de um problema sério: o chamado risco de “selecção adversa”. Isto acontece porque, embora numa primeira vaga a solicitação da moratória pudesse até ser transversal a todo o tipo de devedores, a prazo aqueles que pedem a manutenção da dívida ao abrigo da moratória, e que exercem pressão política no sentido da sua manutenção, são precisamente aqueles que mais contribuirão para as imparidades futuras de crédito. Chutar a bola para a frente e prejudicar a gestão dos activos bancários não é, pois, boa solução.

Esta apreciação negativa justifica-se quer por razões económicas, quer por razões éticas, porque independentemente de os bancos não beneficiarem hoje de boa imprensa imagine-se o que seria se o Governo legitimasse os devedores de um qualquer outro negócio (não financeiro) a não pagarem as suas contas dentro do respectivo prazo… Não seria aceitável. Infelizmente, como o Estado é useiro e vezeiro nessas trapaças há quem esqueça o lado ético, para além do lado económico, das coisas.

Um pouco por toda a Europa foram instituídas moratórias de crédito, em geral, com duração de 6 a 12 meses. A própria Agência Europeia Bancária (EBA) publicou orientações sobre o que fazer com a classificação dos créditos que fossem abrangidos pelas moratórias.

O entendimento foi que, sendo as moratórias transversais a todos os tipos de devedores e oferecidos em iguais condições, créditos que entrassem em moratória não teriam de ser contabilizados como estando em incumprimento. Isto, por seu turno, aliviou os bancos de eventuais imparidades e necessidades imediatas de capital. Mas agora o caso muda de figura. É que a EBA determinou que, após 30 de Setembro, novos regimes que contemplem a prorrogação de moratórias terão de ser acompanhados de avaliações de risco mais apertadas por parte dos bancos, o que levará à reclassificação de muitas moratórias prorrogadas como créditos em risco. Não foi por acaso que o Governo anunciou antes do final do passado mês de Setembro a prorrogação das moratórias de crédito de Março para o final de Setembro do próximo ano.

O desconforto revelado pelos bancos portugueses não surpreende. Na verdade, o que surpreenderia seria a falta de desconforto que, surpreendentemente, isso sim, esteve ausente do discurso público nos últimos meses. O facto de a banca ter hoje má imprensa – em grande medida justificada – resulta nisto: na incapacidade de expressar a crítica mesmo quando a razão assiste. Em vez de terem manifestado desconforto a tempo e horas, os bancos correm agora atrás do prejuízo.

Quanto ao Governo, o executivo não mostra possuir qualquer plano de saída, excepto uma vaga e potencialmente perigosa referência ao papel que poderá vir a ser desempenhado pelo Banco Português de Fomento (cuja existência se justifica, como já aqui escrevi no ECO, mas não como pau para toda a obra). O ministro da Economia fala (e bem) na recapitalização das empresas, através do reforço dos capitais próprios e da dinamização do mercado de capitais, mas isso será sempre um esforço a longo prazo e que para muitas empresas obrigará também a processos de insolvência e de revitalização (pré-recapitalização) mais ágeis.

A situação dos bancos em Portugal é hoje marcada simultaneamente pelo excesso de liquidez e pela falta de capital. Ou seja, a base de depósitos é suficientemente vasta face ao montante global de empréstimos concedidos, porém, a base de capital próprio das instituições face ao total de activos é relativamente pequena face à média europeia e insuficiente para acomodar um disparo nas imparidades.

Neste domínio, segundo dados da EBA (Dashboard Q2 2020), no universo das sociedades não financeiras portuguesas o rácio de empréstimos em incumprimento (NPL) é de 11,8%, face a uma média europeia de 5,1%, encontrando-se aqueles empréstimos provisionados em pouco mais de metade do seu valor. Uma nova vaga de imparidades, ou a exigência de cobertura e reconhecimento das mesmas, é um risco efectivo, o que nos leva para a análise dos sectores empresariais em que os bancos portugueses estão mais expostos face aos seus congéneres europeus. E que sectores são esses? Segundo a mesma EBA, são sobretudo dois: construção (10,6% do total de empréstimos a empresas em Portugal vs. 5,3% na União Europeia) e alojamento e restauração (7,5% PT vs. 2,8% UE).

Trocando as percentagens por números absolutos, constata-se que os empréstimos aos sectores da construção e do alojamento e restauração são de 8 mil milhões e 6 mil milhões de euros, respectivamente. Ou seja, estamos a falar de um subtotal de 14 mil milhões de euros num grande total de 79 mil milhões de euros de empréstimos empresariais. São valores relevantes e, portanto, seria importante que se lidasse com o problema quanto antes – de forma transversal a toda a economia e não apenas limitada a este ou àquele sector.

Por três razões.

  1. Primeiro, porque a rigidez actual estará provavelmente a contribuir para a rigidez de alguns preços de mercado (v.g., activos imobiliários que estão a ser avaliados de forma fictícia).
  2. Segundo, porque em muitos casos o tempo provavelmente não resolverá o assunto, antes criando outros de que são exemplo as empresas “zombie”.
  3. Terceiro, porque se o problema se tornar demasiado grave, ele acabará por bater à porta dos do costume: os contribuintes. De facto, dado que o Governo está a legitimar o não pagamento atempado das prestações, facilmente haverá quem venha a argumentar pela existência de indemnizações do Estado aos bancos. É só dar corda aos juristas.

A situação empresarial é hoje dramática para muitas empresas e entre os agentes económicos mais penalizados pela pandemia encontram-se sobretudo os empresários. Todavia, a partir do momento em que deixou de existir confinamento obrigatório por motivos de saúde pública – até quando, perguntarão muitos, mas essa é outra questão – deixou também de existir razão para a existência de programas como as moratórias de crédito, em particular quando estas causam dano directo a outros agentes económicos.

A recessão económica, seja devido a uma pandemia ou por outro motivo qualquer, faz parte do risco de qualquer negócio e tem de ser encarada como tal. Caso contrário, teremos uma avenida aberta para todo o tipo de subsidiação estatal e para a distorção da concorrência por via administrativa – a melhor forma de eliminar o incentivo à racionalidade económica, de interferir com o sistema de preços, e de impor a servidão fiscal aos contribuintes.

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