Do numerário ao euro digital

A desmaterialização do dinheiro está a ser acelerada pela pandemia, mas é preciso mais, mais concorrência entre fintech e banca tradicional e também do que vier a fazer o BCE no euro digital.

Num mundo cada vez mais digitalizado, seria de esperar que a utilização de numerário estivesse a cair em desuso. Mas não foi isso que sucedeu em Portugal nos últimos anos, onde a sua utilização entre 2013 e 2017 até aumentou.

De acordo com o Banco de Portugal, 60% do número total de pagamentos realizados em 2017 foram-no através de numerário, que continua a ser o meio de pagamento mais utilizado em Portugal. No extremo oposto esteve o cheque que, apesar de estar em desuso, representando em 2017 apenas 1% do número total de pagamentos, suportou ainda quase 54 milhões de pagamentos. Estes dados constam da “Estratégia Nacional para os Pagamentos de Retalho – Horizonte 2022”, publicada pelo Banco de Portugal, e mostram que o caminho rumo à digitalização financeira em Portugal está ainda no início.

A desmaterialização do dinheiro consegue-se através da passagem dos pagamentos em numerário (notas e moedas físicas) aos meios de pagamento escriturais (cartões, cheques, débitos directos) e, cada vez mais, também na passagem às moedas digitais. A adopção dos meios desmaterializados dependerá sempre do grau de sofisticação de cada mercado, da sua natureza competitiva tanto do lado da procura como da oferta, e no caso das moedas digitais (ou cripto divisas) do grau de confiança na aceitabilidade e poder aquisitivo das mesmas. É uma transição que está em curso e que foi acelerada pela pandemia. Todavia, em Portugal, apesar do interesse revelado por uma franja da população, sobretudo entre os mais jovens, continuamos atrasados nessa transição.

O exemplo mais paradigmático do atraso em Portugal é a sobrevivência do cheque. Não é um problema exclusivo de Portugal, mas denota a resistência que os meios desmaterializados ainda vão encontrando.

Na verdade, o cheque é a forma mais onerosa e menos eficiente de proceder a um pagamento. No entanto, em Portugal todos os anos continuam a passar-se dezenas de milhões de cheques entre os agentes económicos e, entre estes, os principais utilizadores dessa tecnologia arcaica são as empresas – responsáveis por 62% do número de cheques emitidos em Portugal em 2019. Trata-se de uma situação preocupante, porque deveriam ser as empresas a liderar a evolução para meios de pagamento mais eficientes e menos onerosos.

Em Portugal, uma parte da resistência em abandonar o cheque tem a ver com o facto de os bancos, por imposição legal, não poderem negar o pagamento de um cheque de valor não superior a 150 euros, mesmo quando se trata de um “cheque careca”. Na prática, quer o “sacador” (quem passa o cheque) quer o “beneficiário” (aquele que o credita na sua conta) possuem naquelas circunstâncias um incentivo regulamentar em utilizar o cheque. Fica a arder o “sacado” (o banco sobre o qual o cheque é passado). Mas a resistência em abandonar o cheque também vem do lado dos bancos, pois, ao ser-lhes permitido a não disponibilização imediata do valor do cheque ao beneficiário, os bancos podem continuar a fazer uso dos fundos, é certo que por períodos curtíssimos, mas sobre montantes que podem ser consideráveis.

O exemplo anterior exige dois tipos de resposta. Por um lado, exige uma resposta administrativa, eliminando a imposição legal que põe em risco os bancos sacados. Trata-se de acabar com a protecção atribuída a quem passa cheques sem cobertura. Por outro, o problema também exige uma resposta de regulação, na qual o regulador é obviamente fundamental, e que passa pela promoção da concorrência. Trata-se de abrir a porta a outros operadores, coisa que nem sempre está nas prioridades do regulador em Portugal, para que os agentes económicos tenham ao seu dispor diversas alternativas.

É, pois, de boa regulamentação (por oposição a muita regulamentação) e de muita concorrência que se faz o ecossistema financeiro.

Felizmente, o ecossistema nacional de “fintech” começa hoje a ganhar uma dimensão que já lhe permite pressionar os reguladores no sentido de uma maior abertura. De acordo com o Portugal Fintech Report 2020, grande parte dos novos operadores nacionais de “fintech” estão no domínio dos pagamentos e transferências, a exemplo do que tem sucedido por esse mundo fora. Mas outras áreas há onde novos operadores vão também florescendo e que se estendem a outras áreas do sector financeiro como os seguros. Trata-se de uma pressão competitiva que faz muito bem ao sector, a começar pelos operadores já estabelecidos que ou acompanham a inovação ou tenderão a desaparecer, além dos próprios reguladores que também sairão beneficiados se de igual modo souberem acompanhar o movimento.

A desmaterialização do dinheiro está a ser acelerada pela pandemia. Numa altura em que as pessoas rejeitam o contacto físico entre si, é natural que não queiram também estabelecer contacto físico com dinheiro. Mas, para além desta peculiaridade mais ou menos circunstancial, há outras razões que têm contribuído para a digitalização do sector financeiro.

As exigências dos clientes quanto à rapidez de execução e ao acesso ubíquo a serviços financeiros explicam parte da digitalização financeira. E depois há outros factores, como a emergência das redes sociais como plataformas de “e-commerce”, ou os receios dos aforradores quanto às políticas monetárias ultra acomodatícias dos bancos centrais, que explicam outros fenómenos associados à digitalização financeira como, por exemplo, a procura por moeda digital.

Os bancos centrais estão especialmente atentos ao fenómeno da moeda digital.

  • Primeiro, porque as moedas digitais tendem a assentar em arquitecturas descentralizadas, pondo em risco o papel institucional desempenhado pelos bancos centrais. Por exemplo, na arquitectura operacional associada à bitcoin ninguém precisa de um banco central para nada.
  • Segundo, porque a emissão de moedas digitais pelos próprios bancos centrais, que a prazo substituíssem o dinheiro físico em circulação, permitiria controlar melhor o circuito do dinheiro através da potencial eliminação da anonimidade que caracteriza a utilização do numerário.
  • Terceiro, porque a moeda digital permitiria também aproximar o banco central dos agentes económicos finais, possibilitando outras formas de política monetária.

Sobre isto, o Banco Central Europeu acaba de publicar uma reflexão com vista à eventual criação de um euro digital (“Report on a digital euro”). Trata-se de uma reflexão meritória, até pela sua natureza didáctica, e que acaba com o tabu que a certa altura o BCE parecia querer estabelecer em redor das moedas digitais. Se não podes vencer o inimigo, junta-te a ele. É o que o BCE parece agora estar a fazer. Mas lido o documento, que considera duas hipóteses alternativas – um modelo directo (em que os agentes económicos possuiriam contas com euros digitais no próprio BCE) e um modelo intermediado (em que os agentes económicos deteriam euros digitais através de contas domiciliadas em intermediários financeiros) –, o leitor fica na dúvida sobre qual dos dois modelos os autores do relatório realmente preferem…

A adopção de um modelo directo levaria a alterações profundas no sistema bancário. Na prática, os depositantes seriam incentivados a abrir conta no banco central, e aí domiciliar os seus euros digitais, bem como todos os outros euros que fossem convertidos um-por-um, levando a que os bancos comerciais tivessem de financiar as suas operações com menos depósitos de depositantes de retalho e mais empréstimos do banco central e/ou de outros bancos. Mas, e é aqui que a preferência do banco central não é clara, o modelo directo permitiria reforçar o poder do banco central e, sobretudo, operacionalizar facilmente a emissão de dinheiro em benefício directo dos agentes económicos. Em suma, tornaria possível uma forma ainda mais agressiva de “helicopter money”. Não sendo para já que isto vai acontecer, ficou uma semente a germinar.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

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