O jornalista Filipe Santos Costa assina a newsletter "Novo normal" e esta semana analisa a estratégia de Rui Rio nos Açores, o acordo com o Chega e o que isso significa.
“Como se acaba com uma democracia? A resposta faz lembrar aquelas anedotas dos miúdos sobre ‘como se passa um elefante debaixo da porta?’. Há umas décadas, passava-se o elefante rebentando com a porta, ou seja, acabava-se com uma democracia patrocinando um golpe de estado. Hoje acaba-se com a democracia como se passa um elefante por debaixo da porta. Às fatias. De preferência, muito fininhas.”
A citação acima é de um texto que Rui Tavares publicou há coisa de um ano na revista Egoísta, no qual explica como Viktor Orbán conseguiu, em menos de uma década, acabar com a democracia na Hungria (segundo o último “Democracy Report” do think tank europeu V-Dem, a Hungria é o primeiro caso de um Estado não-democrático na União Europeia). Quando era deputado europeu, Tavares foi autor de um relatório sobre a deriva autoritária na Hungria, tendo concluído que uma série de políticas promovidas por Orbán eram “incompatíveis com os valores” básicos da UE, “de respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias”.
É fundamental compreender o caso húngaro porque fornece um roteiro prático para o autoritarismo, que foi seguido por outros candidatos a autocratas. É assim que uma democracia deixa de o ser. Os três passos decisivos de Orbán para desmantelar a democracia húngara foram:
- Alteração das leis sobre comunicação social, criando uma nova entidade reguladora entregue a aliados seus: os media que não alinhassem com as narrativas oficiais foram acusados de crimes variados, desde serem “contrários à moralidade comum” a “politicamente desequilibrados” ou de praticarem “ofensas à nação”. E assim foram intimidados, depois, asfixiados com multas, por fim, encerrados ou obrigados a mudar de proprietário (sempre para as mãos de gente próxima do poder)
- Mudanças no sistema judicial, com a argumentação de o tornar mais eficaz, por exemplo, no combate à corrupção. Foi criado um novo conselho superior de magistratura, com uma controleira indicada por Orbán; as presidências de inúmeros tribunais foram decapitadas, graças a uma lei obrigando à reforma compulsiva de juízes com mais de 63 anos. Os projetos para controlar a justiça eram ainda mais ambiciosos, mas a UE forçou alguns recuos.
- Reforma do sistema político: por um lado, pela alteração das leis eleitorais, com reconfiguração dos círculos e uma forte redução do número de deputados, o que permite a Orbán ter sucessivas maiorias absolutas, na ordem dos 2/3; e, com base nessa maioria qualificada, sucessivas revisões da Constituição – até uma revisão total, que impôs uma Constituição completamente nova.
Ele há coincidências. Desde que assumiu o seu primeiro cargo executivo, como presidente da Câmara do Porto, Rui Rio teve sempre a comunicação social e o sistema de Justiça como seus alvos principais. E a “reforma do regime” é a sua bandeira milagrosa para regenerar a pátria. Rio apresenta-se como um regenerador, defensor da mudança do “regime”, porta-voz do “politicamente incorreto”, contra “os interesses”, contra o “sistema”, em nome de um “banho de ética”. É impressionante a sobreposição do seu discurso com a parte do discurso populista, regenerador, purificador, com que Viktor Orbán justificou os passos com que subverteu a democracia húngara. A coincidência é demasiado perfeita para poder ser ignorada.
Era só ver os sinais
Não quero com isto dizer que Rio decidiu imitar Viktor Orbán. Nada disso. O imitador desta história surge mais abaixo e chama-se André Ventura. No caso de Rio, é pior do que isso: há anos que escolheu estes alvos, há anos que definiu os seus “inimigos” (não são adversários, são inimigos mesmo, como ele explica), há anos que acredita mesmo neste programa de ação. Os sinais estavam todos lá, num discurso com todos os ingredientes do populista:
O político que quer mudar o regime
“O que está em causa é o regime, tal como no 25 de abril” (2011)
“A situação a que chegámos é muito grave, e o regime tem de sofrer reformas profundas, para não dizer ruturas” (2011)
“Se houvesse eleições antecipadas, não haveria uma mudança de regime, mas uma mudança de Governo. Isto é de tal forma grave que uma simples troca de Governo é insuficiente” (2011)
“[Quero fazer] uma série de reformas que no seu somatório possam significar uma rutura [de regime” (2017)
“Este regime tem rigorosamente o mesmo tempo que o Estado Novo quando caiu. O Estado Novo caiu de podre. Este não está assim, mas está muito desgastado pelo tempo. Ele pode acabar” (2017)
O político crítico dos outros políticos
“Se não fossem os políticos, era fácil resolver o problema” (2011)
“O poder político é cada vez mais fraco e está cada vez mais descredibilizado” (2011)
“[O poder político] está desacreditado”, “é incoerente”, é “incapaz de resolver os problemas que o país tem pela frente” (2012)
“A vertente económica da crise é uma consequência da crise política, é filha dos erros e constrangimentos políticos” (2013)
“Foram poucos os erros económicos que se cometeram e muitos os erros políticos” (2014)
“Continua a haver muita gente de qualidade na política, mas a quantidade dos que não têm qualidade é cada vez maior. Os de fraca qualidade são cada vez mais e os de qualidade são cada vez menos” (2015)
“Se há coisa de que hoje a política precisa em Portugal, é justamente de um banho de ética” (2017)
O político contra o sistema de Justiça
“A Justiça em Portugal funciona pior do que no tempo da ditadura. Só não há os julgamentos políticos, de resto está tudo claramente pior” (2011)
“A Justiça não está capaz” (2013)
“Comparando, o sistema de Justiça está menos capaz de defender os direitos dos cidadãos do que estava há 40 anos [durante a ditadura]” (2016)
“[A Justiça] é incapaz de qualquer controlo democrático” (2011)
“[A Justiça] não consegue condenações e ainda exibe a sua fraqueza na praça pública, com a ajuda da comunicação social” (2016)
“[Temos de] acabar com isto de estarmos sempre suspensos de as medidas terem de ir ao Tribunal Constitucional” (2013)
O político que faz frente à comunicação social
“[A comunicação social] diz o que lhe apetece” (2011)
“A prioridade da comunicação social é o espetáculo, o conflito, o superficial, o fútil” (2013)
“Há muito fraco sentido de Estado na comunicação social. (…) Há demasiadas notícias deturpadas, sem verdade, rigor, isenção e independência” (2015)
“O regime tem de encontrar maneira de pôr fim aos comportamentos [da comunicação social] a que temos assistido. (…) Através de um tribunal especializado em Comunicação, envolvendo também a publicidade, o marketing, internet, etc. (…) O que defendo é uma lei muito mais apertada, onde a responsabilização pelo que se escreve e diz seja maior” (2004)
“Os media têm determinados estereótipos e maneiras de atuar que são completamente incompatíveis com uma governação séria e eficaz” (2009)
“A minha liberdade acaba à porta da liberdade dos outros. A liberdade de imprensa também para à porta da liberdade de todos nós” (2015)
O político desencantado com a democracia
“Hoje temos, manifestamente, menos democracia do que num passado recente” (2013)
“O regime que estamos a viver já tem muito pouco de democrático” (2011)
“Acho uma demagogia pedir-se uma maioria absoluta. Uma maioria absoluta não chega” (2014)
“Chegámos a estes 40 anos [desde o 25 de abril] com descrédito na política, com uma quase impossibilidade de estabelecer-se um contrato de confiança entre os portugueses e a política” (2019)
“A democracia, que é suposto ser a vontade da maioria, tem fenómenos ao contrário, são as minorias que impõem os seus interesses contra o interesse da maioria” (2011)
São algumas citações, de muitas mais que se poderiam compilar, da longa marcha de Rio pela mudança de regime, contra a liberdade de imprensa e o sistema judicial. Os três pontos basilares da deriva autoritária de Orbán.
O mito do político diferente dos outros
A ascensão de Rui Rio baseou-se no mito da sua singularidade. “Acho que sou um político diferente dos outros”, declarou numa entrevista, em 2017. “Sou um caso sui generis”, disse noutra ocasião. “Se eu ganhar, só a minha maneira de ser vai mudar muita coisa”, prometeu na campanha para a liderança do PSD.
Essa singularidade tem várias dimensões, que constituem outros tantos mitos: da invencibilidade, da ética inquestionável, da coerência, do desprendimento, o mito de ser um social-democrata da ala esquerda do PSD. Como sinalizou Sebastião Bugalho há uns meses, neste texto, “os militantes do PSD continuam a olhar para Rio como tudo o que ele não foi mas ainda diz ser”.
Os mitos de Rui Rio têm sido sucessivamente desmentidos pela realidade:
- A invencibilidade: quando se candidatou à liderança do PSD, Rio alegava (com razão) que nunca tinha perdido uma eleição; entretanto, já perdeu duas eleições nacionais – e uma delas, as legislativas, com um dos piores scores da história do PSD.
- A ética: quando se candidatou à liderança, prometeu dar à política “um banho de ética”; entretanto, defendeu até ao limite o seu primeiro secretário-geral, que mentiu em relação às suas habilitações académicas; perdoou o outro secretário-geral, que assinalou falsas presenças na Assembleia da República; e alimenta teorias da conspiração para defender os seus colaboradores mais próximos que estão a contas com a justiça (há outros, mas basta dar o exemplo de Salvador Malheiro).
- A coerência: os primeiros dois anos de Rio foram de permanente zigue-zague entre a vontade de fazer acordos com o PS e a necessidade de fazer oposição; há dois anos, Rio jurou que não faria “ao PS o que o PS fez ao PSD”, ou seja, que deve governar o partido mais votado – agora só pensa em fazer o contrário disso; há poucos meses, considerou que criticar o Governo em plena pandemia “não é patriótico” – parece que foi noutra vida…
- O desprendimento: o líder que mais diz que não precisa para nada de fazer política, e que não precisa de ser líder partidário, foi o primeiro a contrariar décadas de prática instituída, segundo a qual líder do PSD que perde as legislativas dá o lugar a outro (a excepção foi Durão Barroso, que assumiu o lugar, em situação de emergência, em cima de umas eleições).
- O centro-esquerda: o homem que prometeu reposicionar o PSD no centro-esquerda, afastando-o da direita de Passos Coelho, dá o passo que nunca ninguém deu antes ao negociar acordos com um partido de extrema-direita (e até inscrito na bancada da extrema-direita europeia), admitindo fazê-lo também a nível nacional.
É verdade que há dimensões pelas quais Rio é um político sui generis, para usar o latim que o próprio usou. Escrevi este longo texto há mais de dois anos sobre isso (sem surpresa, o texto valeu-me insultos e um processo – que foi arquivado). Rio também é sui generis na forma como construiu estes mitos, que resistem, havendo muita gente que ainda o vê como um moderado movido pelo interesse nacional. Sim, Rio foi muitas vezes um moderado (parecia um moderado comparado com Passos – mas o ódio a Passos costuma cegar…). Sim, Rio coincidiu por vezes com uma certa leitura do interesse nacional, mas isso serviu quase sempre o interesse tático de engrandecer o seu mito – depois de receber esses créditos, salta facilmente de uma posição para o seu contrário.
A singularidade de Rio não está tanto em ser um político diferente dos outros – pelo contrário, é demasiado igual na contradição entre proclamações e ações.
Acusa os seus adversários de, ao criticarem-no, estarem a atacar o PSD – mas nas autárquicas de 2013, apoiou Rui Moreira contra o candidato do PSD. Vai aos arames quando a imprensa o visa em notícias incómodas – mas usa recortes de imprensa para atacar os seus adversários. Denuncia o caciquismo dos partidos – mas conquistou o PSD apoiado numa poderosa rede de caciques. Promete um banho de ética – mas não aplica a ética aos seus amigos. Prometeu por o PSD na ordem (“deixe-me ganhar que vai ver como as coisas são”) – mas no passado defendeu a “desobediência ao programa” do PSD. Atacou os seus adversários por terem ligações à Maçonaria – mas não se incomoda de ter colaboradores maçons. Zurziu nas nomeações de familiares no Governo – mas indicou o marido da sua porta-voz para a justiça para o Conselho Superior de Magistratura.
Até nas pequeninas coisas está lá a incoerência. O homem que ridicularizou outros políticos por terem ido ao Programa da Cristina cozinhar, considerando isso populista e pouco digno, foi ao Programa da Cristina… brincar com comboios elétricos. Há de certeza um universo onde brincar com comboiinhos é uma atividade mais digna, mais respeitável e mais reveladora do caráter confiável de um político do que cozinhar… mas será num universo que só existe na cabeça de Rui Rio.
Dir-se-á que são incoerências em que todos os políticos caem. Ou hipocrisia. Não discuto isso – pelo contrário, esse é o meu ponto: Rio é um político como os outros. A grande diferença é ter conseguido criar o tal mito da singularidade, pelo qual se coloca num patamar ético e moral superior aos restantes.
Rio e Ventura, dois iliberais
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Mas voltemos a Orbán.
Convém notar que Viktor Orbán não foi sempre um aspirante a ditador. Começou por se destacar como opositor ao regime na Hungria comunista e ativista pela democracia, no final dos anos 80, quando os comunismos caíam como peças de dominó. O jovem Orbán, com 26 anos e cabelos compridos, desafiou os russos a libertarem a Hungria e apelou a eleições livres – o atual Orbán, envelhecido e de cabelo bem cortado, é um compincha de Putin, dirige um regime praticamente de partido único, com eleições nem livres nem justas, e é um dos principais promotores na Europa de uma vaga de autoritarismos ultra-conservadores, nacionalistas, racistas e xenófobos.
A morte da democracia húngara não passou apenas pelos três passos essenciais que referi acima. Houve muito mais: leis discriminatórias em relação a minorias sexuais e a famílias “não tradicionais”, leis persecutórias em relação aos sem-abrigo, leis discriminando as pessoas de determinadas religiões (nomeadamente muçulmanos), ataque a instituições de ensino e ONG desalinhadas do Governo, repressão de minorias étnicas (como ciganos) e de refugiados. A jornalista e académica Anne Applebaum nota, em O Crepúsculo da Democracia, que Orbán conseguiu criar um ambiente de paranóia em relação a uma invasão de refugiados muçulmanos que nunca existiu.
Isto faz lembrar-lhe alguma coisa? Sim, há um padrão que se repete nos novos partidos populistas de extrema-direita. Se a discriminação de minorias sexuais, de minorias étnicas, de ciganos, de estrangeiros, a defesa de fronteiras fechadas, ou a política baseada em fake news lhe faz lembrar o Chega, não é por acaso.
E chegamos ao momento em que as ideias de Rui Rio para mudar o regime se encontram com a ideia de André Ventura de que o regime está “podre” e é necessário fundar uma IV República. Os dois discursos sobre a reforma do regime encaixam demasiado bem.
Um ponto comum de ambos os programas (a defesa da redução do número de deputados) foi incluído no acordo entre o Chega e o PSD para os Açores. Portugal não tem mais deputados por habitante do que a média europeia, mas por detrás desse acordo está uma narrativa anti-política partilhada pelos dois líderes: a ideia de que os políticos são preguiçosos e de que no Parlamento não se trabalha. Rio assumiu isso quando negociou com António Costa o fim dos debates quinzenais: “O primeiro-ministro não pode passar a vida em debates quinzenais. Tem é de trabalhar”. Escuso-me de evidenciar o discurso anti-política de Ventura.
Rio teve, ao longo dos anos, muitas ideias para a alteração do sistema eleitoral. Para além de um Parlamento com menos deputados (nada de novo para o PSD), sugeriu “uma composição variável”, que “teria a ver com os votos brancos e nulos, não com a abstenção”. Rio “simpatiza” com a ideia de “os votos brancos e nulos elegerem cadeiras vazias” na Assembleia da República. Também simpatiza com a ideia de que alguns mandatos sejam mais longos (cinco anos em vez de quatro), para que as eleições interfiram menos na governação.
Outro ponto comum, igualmente incluído no acordo dos Açores, é a questão da “subsídiodependência” em relação ao rendimento social de inserção (RSI). Ventura aproveita esse argumento para diabolizar em simultâneo o Estado Social e os ciganos, mesmo sabendo-se que estes representam menos de 4% da despesa do RSI – isso interessa-lhe pouco, o que importa é encontrar bodes expiatórios, na melhor lógica xenófoba e racista.
O líder do PSD não vai ao ponto de apontar aos ciganos. Porém, Rio alinha na equivalência entre subsídiodependência e preguiça, num exercício de bullying aos pobres. E não é de agora. As populações mais pobres do Porto (no Aleixo, no Cerco ou no São João de Deus) sentiram-no na pele. Em 2009, numa entrevista do Público, Rio foi confrontado com o mau estado da limpeza das ruas e dos espaços públicos no Porto. Respondeu… atacando o rendimento mínimo: “Se o Governo tivesse uma política correta, muito do rendimento mínimo garantido podia ser convertido, por exemplo, em jardineiros. (…) Estão no rendimento mínimo garantido, estão fantásticos”, respondeu Rio. E não conseguia perceber como é que os beneficiários do RSI não aceitavam trabalhar em troca desse valor. Para trabalharem, “exigem muito mais. Não faz sentido, isto!”, insurgia-se o autarca. Supõe-se que não será difícil entender-se com Ventura para obrigar os beneficiários do RSI a trabalhar por um valor bem abaixo do salário mínimo (no máximo são 190 euros).
Por outro lado, ambos competem no discurso populista contra as elites em geral e a cultura em particular. Mais “subsídiodependentes”… Ventura, que é tão ativo no Twitter como Rui Rio, passa uma parte do seu tempo a insultar artistas. Rio passou parte dos seus 12 anos na Câmara do Porto em guerra com o setor da cultura. Cortou nos apoios, e os que manteve tinham uma regra de ouro: as instituições apoiadas pela câmara deviam absterem-se de fazer críticas à autarquia. Porém, esta fobia à subsídiodependência não o impediu de pôr a autarquia a subsidiar uma atividade da sua predileção – corridas de automóveis e de aviões.
Da mesma forma que ambos partilham a ideia do esgotamento do regime, ambos fazem, à sua maneira, uma releitura do período da ditadura. Ventura veio agora, à pressa, fazer umas críticas a Salazar, talvez para se “moderar”, como Rio lhe pede – cai nessa quem quer. Mas note-se como Rio, ao mesmo tempo que carrega nas cores com que desacredita o funcionamento da democracia, suaviza o regime anterior ao 25 de abril – a justiça até funcionava melhor (tirando esse pequeno pormenor dos processos políticos). Rio já disse com todas as palavras: “Mas que fascismo é que caiu? Onde é que nós algum dia em Portugal tivémos fascismo?” Se Rio estivesse em contexto académico, numa aula de história ou ciência política, seria uma discussão interessante; sendo um discurso político de âmbito partidário, tem outras conotações…
Um namoro anunciado
A abertura de Rio a acordos com o Chega é uma surpresa? Só para quem passou anos distraído. Como tem dito e repetido João Miguel Tavares, que defende o acordo entre os dois partidos, “entre Rui Rio e André Ventura, Rui Rio é possivelmente mais iliberal do que André Ventura”.
Para além das convicções, também a tática de Rio o empurrou para os braços do Chega. Em 2018, ainda o Chega não existia, Rio explicou neste episódio do Bloco Central (TSF) a ideia de encostar ao centro-esquerda. Era “matemático”, disse Rio, que o PSD não podia crescer à direita, “porque ali não há por onde crescer”. Aceitava, até, perder algum terreno à direita – “deixe lá perder um ponto ou dois, que não se perde nada, fico muito contente se o CDS tiver mais um ponto ou dois.” Rio queria ganhar votos ao centro, e depois coligar-se à direita. Mas fez mais: hostilizou ativamente a ala direita do PSD, convidando essa gente a sair do partido caso não se identificasse com o seu padrão de purismo social-democrata.
Porém, nas legislativas, Rio falhou em toda a linha: não cresceu ao centro, e o CDS encolheu à direita. Mais: o Chega é o partido que, à direita, pode ter os deputados decisivos para um bloco de direita (mais a Iniciativa Liberal, também a crescer, embora menos do que o Chega).
Sem plano B, Rio fingiu que o Chega é ‘business as usual’. Por isso sempre normalizou o Chega. Quer provas?
- No final do ano passado, quando André Ventura já tinha sido eleito para o Parlamento, Rui Rio foi à cimeira do Partido Popular Europeu realçar que em Portugal não existia “qualquer movimento significativo de perfil fascista ou de extrema direita. Nesse aspeto, a Europa e o PPE podem estar sossegados relativamente a Portugal”.
- No início deste ano, quando se colocou, durante as diretas do PSD, a questão sobre como relacionar-se com o partido de Ventura, Rio disse que é “um bocadinho exagerado classificar o Chega de fascista ou extrema-direita” (mas, recorde-se, para Rio nunca houve fascismo em Portugal). E admitiu conversas com o Chega se as posições do partido “se forem atenuando e ele [Ventura] se for moderando um pouco mais”. Poucos prestaram atenção.
- Só em julho, quando Rio repetiu a mesma coisa na RTP, o caso chamou a atenção do país. Mas ainda havia quem duvidasse…
- Não havia dúvidas para quem ouvisse outra entrevista de Rui Rio, esta ao Porto Canal. “Aquilo que estamos a ver é o Chega a crescer e os outros a definhar”… portanto, “se amanhã o Chega tiver dez ou doze por cento, e o CDS a recuar para dois, não me adianta ter simpatia pelo CDS”.
De acordo com a sondagem publicada esta sexta-feira pelo Correio da Manhã – a primeira após o affair PSD/Chega, enquanto o partido de Rio mantiver intenções de voto tão baixas, nem o crescimento do Chega lhe dá boleia para o poder.
Entretanto, a máquina partidária já acompanhou Rio nesta transferência de simpatia – se é o Chega que tem os votos, será o Chega o parceiro necessário. Apesar dos protestos de alguns notáveis do PSD, o aparelho do PSD já normalizou o partido de Ventura, como se constata por esta notícia do Expresso. Um líder distrital, particularmente conhecido pelos seus malabarismos políticos, vai ao ponto de dizer que é “mais perigoso para a sociedade portuguesa o PAN do que o Chega”. Como diz um alto dirigente do PSD, “a máquina desespera por poder”. O desespero, como se sabe, raramente é bom conselheiro.
Há uns anos, um social-democrata que conhece Rio muito bem disse-me sem hesitar: “Se ele tivesse poder, era igual ao Viktor Orbán”. A frase ficou-me. Fui constatando as coincidências, e hoje, somando Rio a Ventura, temos o programa todo do ditador Orbán.
Esse meu interlocutor social-democrata, apesar da convicção com que fez a comparação, nunca retirou dela qualquer consequência. Podia ser um dos muitos sociais-democratas que se afastaram de Rio ao perceber quão longe vai a sua natureza autoritária, iliberal e anti-democrática – foi o que fizeram velhos amigos como José Pedro Aguiar-Branco ou Manuel Castro Almeida, que romperam perante sucessivas linhas vermelhas.
Este sábado, por coincidência, na mesma página do Diário de Notícias, Paulo Baldaia e Pedro Marques Lopes fazem o mesmo: rompem com Rio. É bom lembrar que, nos últimos anos, o Paulo e o Pedro (pessoas com quem tive muita convivência no passado) foram dois dos principais carregadores do andor de Rui Rio na comunicação social: Nas muitas plataformas onde fazem análise e opinião, nunca lhes faltou uma palavra de elogio, compreensão e incentivo às atitudes de Rio — mesmo as que já prenunciavam o que temos à vista. Mas mais vale tarde do que nunca.
Quanto ao meu interlocutor do PSD, o tal que há anos foi tão certeiro na análise dos riscos de Rio ser um novo Orbán, mantém-se um fiel quadro no partido, fazendo extraordinárias acrobacias para continuar nas boas graças do líder.
Há muito disso.
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Rio + Ventura = Orbán
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