Zeros à direita

Da próxima vez que o governo puser um zero à direita numa qualquer despesa, lá continuaremos a olhar para outros zeros... à direita.

I

Pouco depois da pandemia chegar a Portugal, o acionista da TAP anunciou que a empresa precisaria de 400 milhões de euros. Duas semanas depois, o valor foi corrigido para entre 600 e 700 milhões. Nem uma semana depois, já tinha passado para entre 700 e 900 milhões. Passado um mês já estava nos 1200 milhões. Logo a seguir ao Verão passou-se para 1700 milhões. Na semana passada, como quem não quer a coisa, o sindicato dos tripulantes já veio anunciar que na verdade a empresa precisa de 4 mil milhões.

Em cerca de sete meses uma conta de 400 milhões passou para 4000 milhões. “Apenas” mais um zero à direita. Para termos a noção da dimensão deste valor, isto são cerca de 400 euros por português, incluindo crianças. Se dividíssemos apenas pelos que são contribuintes líquidos, o montante seria muito maior. Para percebermos ainda melhor, este valor dava para uma ajuda de mais de 50 mil euros a cada restaurante no país e ainda sobrava. Daria também para suportar os custos de transição para um sistema fiscal mais atractivo, relançando a economia e criando mais empregos com salários mais altos de forma sustentável.

II

Ser polícia em Portugal não é fácil. Os agentes da polícia merecem como qualquer outro trabalhador sair de casa com a certeza de que regressam nas mesmas condições de saúde. As suas famílias merecem a mesma paz de espírito que todas as outras famílias. Garantir condições de segurança às forças policiais é essencial a qualquer estado de direito ou sociedade decente.

A filmagem de acções policiais onde os agentes possam ser identificados aliada à descontextualização e caça ao homem que por vezes se faz nas redes sociais pode colocar em causa essa segurança. Não é por acaso que em muitas situações já lhes é recomendado agir de cara tapada. Por outro lado, como em todas as profissões, há polícias éticos e menos éticos. Há pessoas boas e bestas. A possibilidade de filmar acções policiais é uma forma de escrutinar as acções de agentes do estado português.

Dificilmente Ihor Homeniuk (sabem quem é?) teria sido assassinado pelas forças de segurança do SEF se tivesse sido interrogado numa zona em que qualquer um pudesse filmar o que estava a acontecer. Ele foi vítima, também, da opacidade.

O equilíbrio entre escrutínio e segurança pode ser discutido. Em França pondera-se a ideia de proibir divulgação de imagens de intervenções policiais que permitam identificar os agentes se essas publicações colocarem em causa a sua segurança ou apelarem à perseguição desses agentes. Concorde-se ou não, este assunto merece discussão, como aquela feita em França.

Concorde-se ou não, é perfeitamente legítimo que uma força política que tenha a segurança dos agentes policiais em mente proponha algo semelhante ao que foi proposto em França. Por cá o Chega aproveitou a deixa e foi mais longe. Não só quer proibir todas as filmagens como propõe um agravamento das penas quando “estejam em causa operações que envolvam ações contra membros de grupos étnicos ou raciais minoritários” para proteger o “grupo racial maioritário”.

O que a proposta noticiada indica é que as acções policiais devem ter níveis de protecção e escrutínio diferentes de acordo com a raça dos indivíduos sobre quem são praticadas. Posso estar enganado, mas também seria a primeira vez em democracia que uma lei conteria a expressão “grupo racial maioritário”.

Se fosse uma lei escrita para lançar uma discussão séria, passar ajudar os agentes da polícia não conteria referências raciais. Mas não, a ideia não é ajudar ninguém, é montar um golpe mediático e ir lentamente normalizando a linguagem identitária e racista à direita para agradar às franjas radicais do partido. A consequência é garantir que algo deste tipo nunca será sequer discutido em boa fé porque vem já manchado com a carga racista que o Chega lhe colocou. O que o Chega faz não é ajudar os agentes da autoridade, é fazer com que a luta pelos seus direitos fique associada a ideias que enojam a maioria dos portugueses, tornando-as intocáveis para outras forças políticas. Mais um zero à direita.

III

Tanto uma coisa como outra contribuirão para empobrecer o país. A TAP será mais um peso a agravar a carga fiscal e atrasar o desenvolvimento económico. A capacidade que o Chega tem de contaminar todas as discussões em que toca, fará com que muitas discussões importantes nunca cheguem a acontecer de boa fé. Mas dificilmente veremos a direita tão entusiasmada a defender os contribuintes da TAP ou a distanciar-se de linguagem discriminadora daquela proposta como esteve com a guerra de alcofa que a entreteve nas últimas duas semanas. Por uma questão de coragem.

No caso da TAP, coragem para combater os lobbies e defender uma solução que deixaria marcas claras e visíveis no país por muito tempo (como aconteceu quando Passos Coelho deixou cair o BES). Preferem que o país suporte um custo muito maior dividido por muitos ao longo do tempo do que assumir a defesa de custo mais pequeno concentrado em alguns num curto espaço de tempo. Por isso ninguém à direita contestará o assalto aos contribuintes na TAP.

No segundo tema, a coragem necessária seria de outra natureza, ainda mais difícil: a coragem de se enfrentar a si próprio e os seus instintos tribais naturais, ao assumir que do seu lado também há algo podre. A cedência mental de romper com a tribo exige uma coragem que vai para além da coragem física: exige coragem social, em muitas casos muito mais complicada, principalmente para quem sente bastante animosidade em relação à outra tribo. E aos poucos a direita vai-se deixando contaminar, perdendo legitimidade moral aos olhos dos mais moderados e permitindo que as suas bandeiras sejam associadas a ideias que a maioria prefere manter enterradas.

Com fundos europeus a chegar, dá jeito à corte ter um bobo a distrair o país com o acessório para que ninguém olhe o essencial. Dá jeito ter alguém que dilui a autoridade moral do espaço não socialista para fazer oposição. Dá jeito à corte ter alguém a falar de temas que até podem ser “politicamente incorrectos” ou “irritar a esquerda”, mas pouco afectam a corte naquilo que lhe é mais importante: o controlo da máquina do estado e capacidade de extrair dinheiro à economia privada. Da próxima vez que o governo puser um zero à direita numa qualquer despesa, lá continuaremos a olhar para outros zeros… à direita.

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