Ano Mágico e Presidenciais
Neste ano de desassossego, o Grande Norte habita dentro de nós, habita no interior do Império das Vacinas. O dia pode ser para esquecer, mas o ano merece ser lembrado para sempre.
O desfile das entrevistas dos candidatos presidenciais parece um torneio de badminton numa clínica de intoxicação. A leveza dos candidatos, a incúria das respostas, três cábulas de sacristia, a presunção da retórica, a repetição das ideias toscas. As entrevistas dos candidatos a Presidente da República são uma espécie de corrente de ar que passa sobre a rede dos portugueses em permanente queda e em permanente câmara lenta.
Cada candidato tem uma agenda pessoal ou partidária ou popular ou calculista. Cada candidato apresenta-se para fixar eleitorado, para marcar uma posição política, para agradar ao café da vila, para aproveitar tempo de antena, para chatear quem o chateou, para satisfazer o ego inchado de quem acha que vai salvar Portugal. Somos uma Nação de Salvadores – Nadadores Salvadores.
Todos os candidatos se comportam assim porque pensam que o Mundo começa com as notícias da manhã e acaba com os desastres da noite. Um ciclo repetitivo e sem memória. Mas o Mundo já cá estava quando os candidatos desembarcaram e vai continuar quando saírem no próximo apeadeiro na estação do anonimato. É a noção de permanência, de continuidade, de mudança, que produz uma cultura política e que permite separar o que é sério do que é ridículo. O que falta aos candidatos é a noção de que as Instituições têm uma personalidade colectiva, as mesmas Instituições que projectam uma psicologia colectiva, personalidade e psicologia que marcam a cultura política e que fazem de Portugal o sítio que Portugal é. Não é com tricas, truques e toques que alguém se pode achar capaz de governar um País ou de ocupar a cadeira da Presidência da República. São candidatos Hobbits de pés grandes e com pequenas visões políticas.
No corredor VIP desliza o Candidato Presidente. De certo modo, o Candidato Presidente pertence à aristocracia republicana, consciente da sua superioridade, discursa o apelo constante à igualdade democrática. O Candidato Presidente está para além da Direita e da Esquerda, está para além de Católicos e de Ateus, está para além dos Ricos e dos Pobres. O Candidato Presidente assume a postura intemporal de quem ocupa Belém por direito próprio emanado de um plebiscito democrático. Marcelo, o Magnânimo, mais parece um Presidente-Rei, fazendo convergir no seu discurso a memória da Nação e o momento do País. Portugal adora a figura paternal de um Presidente no amor surdo ao Paraíso.
As entrevistas contrastam violentamente com a aventura do ano de 2020. A aventura de um ano que se consumiu sem sentido, sem objectivo, sem direcção, preso e cativo do destino desconhecido de uma pandemia. O ano de todas as aventuras está associado à noção de perigo, à ideia de uma viagem, ao medo do imprevisto, mas também à figura do Herói, aquele que enfrenta a estranha peregrinação na noite secreta e que se aproxima do extremo da Terra porque este simplesmente existe e promete a redenção. Neste ano de 2020, os aventureiros são aqueles que realizam os maiores prodígios em nosso nome. Se a sociedade urbana se transformou numa corrente confinada, então os aventureiros serão os Mágicos que viajam nos comboios suburbanos, recordando em todos os momentos que a diferença, a estranheza, a novidade, o risco, a realização, habitam entre nós como uma condição constante, intermitente, e que todos nós podemos ser atingidos, capturados, engolidos. A aventura de 2020 é uma viagem das cidades completas em direcção ao espaço vazio.
Aprendemos também que não é preciso sair de casa para empreender uma aventura. Muitos dos grandes aventureiros não viajaram para além dos limites de um laboratório, de uma biblioteca, de um hospital, de um apartamento exíguo perdido numa rua sem nome com vista para as traseiras de um outro prédio a perder de vista numa encenação sem tempo e sem fim. Os écrans dos computadores fazem brilhar o violeta das paredes brancas, no silêncio das tardes nómadas, antes e depois das canções na montanha das varandas que do alto ameaçam o deserto do asfalto e as dunas de cimento. A aventura pode ter muito a ver com o alargar das fronteiras, mas poucos são os limites topográficos que podem rivalizar com os limites da nossa mente. As melhores aventuras são aquelas em que o verdadeiro objectivo é uma viagem interior, uma qualquer aventura na sabedoria do que somos ou imaginamos ser.
O ano de 2020 é um número sem Heróis, um capítulo em que a nossa atenção esqueceu a teoria dos Grandes Homens para se centrar na experiência das Pessoas Comuns. É o ano em que a História voltou a emergir a partir de baixo, com a ênfase no complexo da Cultura e com o olhar mais remoto no papel das Instituições. As Instituições que se viram política, social, intelectual, culturalmente ultrapassadas por uma explosão da realidade que veio interromper a História com uma nova e perigosa narrativa. No centro da narrativa a fragilidade de todos nós, incapazes de resistir aos novos salteadores invisíveis. Neste ano de desassossego, o Grande Norte habita dentro de nós, habita no interior do Império das Vacinas, cristalinas, distante como o Urânio e o Plutónio. O dia pode ser para esquecer, mas o ano merece ser lembrado para sempre.
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