O Fado é a eterna partida e a eterna chegada. Carlos do Carmo parte para imediatamente regressar e desmentir a estética do desalento, a nostalgia da vontade, a diplomacia da eternidade.

Ano Novo, Morte Nova. Escrevo como se tivesse chegado a Lisboa num navio inglês estranho à travessia do Tejo. Reparo que a cidade é branca de muitas cores e que os prédios vibram uma melodia que vem da tinta e do estuque e que se mistura com as ondas de pedra na calçada. É o som das sereias de Lisboa. A cidade é muitas vezes a paisagem destas crónicas, uma paisagem que fala aos olhos quentes na posse de um coração iluminado pela noite. O som das sereias tem o brilho metálico de uma corda, tem o tédio sonolento de um vadio, tem uma voz de angústia que canta mil e uma histórias na eterna odisseia de um Fado Menor. Hoje nada de política. O Fado morreu de novo e a cidade recolhe a uma Taberna para cantar.

Há um destino cruzado entre as sereias de Lisboa e a voz do Fado. Na urbe de Alfama, nas Colinas de Santana, nas ruas neuróticas do Bairro Alto, nas rugas roídas da eterna Mouraria, o Fado liberta-se da angústia da má fama, do pequeno apocalipse da desgraça e viaja pelo ar claro da cidade até encontrar a novidade e a aventura de uma voz que do antigo se faz novo só com o uso dos sentidos e de uma alma que por ser triste só pode sentir a alegria de quem sabe cantar o que é triste. Cantar o que é triste e o que é belo é a respiração da canção de Lisboa, uma tormenta permanente que promete a morte e a salvação, a mentira e a verdade, o paraíso e o inferno, tudo entrelaçado na mesa de pedra de uma leitaria esquecida onde as mulheres fáceis e os fadistas bebem galões fora de horas acompanhados pela humanidade de uma sandes de queijo. Esse mundo acabou, mas o Fado sobe no silêncio que apita no rio e passa a habitar a voz solene e solar de Carlos do Carmo.

E na voz de Carlos do Carmo o Fado ganha o aliado oceânico de um cronista da cidade. O Fado desfila como num grande cortejo de Tangos e de Flamenco, vertigens de um Árabe distante, reflexos de uma África perdida, requintes de uma Lisboa que desperta, qualquer coisa entre as ilustrações novecentistas dos cegos a vender versos de canções e a majestosa procissão pintada na alma e na identidade de uma Nação. Os sons do Fado ganham os olhos de outra coisa, marcam a nova sociologia da cidade, riscam a outra psicologia do fadista, mantêm o rigor ilustre de um antiquário na romanesca aventura de uma história que recomeça todas as noites.

Na voz de Carlos do Carmo a poesia não é a formalidade dos ritmos mecânicos, mas a visão anatómica que consegue tocar o osso e tocar a carne, deslizando nos nervos a omnipresença da morte e o subjacente fluxo da vida. É o Fado a partir do qual o universo é construído sobre uma melodia simples e maior do que a vida, onde os modelos são fulgurantes na diferença de uma repetição que toca a epopeia da tragédia e da comédia, como os dramaturgos para quem as pessoas e as situações são símbolos intemporais e incarnações de princípios eternos e fulgurantes. Daqui a proximidade ao destino. Daqui o mistério de uma alma só comovida do sonho e pouco da vida.

A obra de Carlos do Carmo resulta numa série de aventuras assimetricamente construídas e novamente estilizadas pela urgência do tempo e dos tempos, umas vezes tomadas por uma luz resplandecente, outras vezes mergulhadas em sombras profundas que só existem no registo das lendas. O Fado ganha a complexidade colorida por um rosário iluminado por uma infinidade de matizes, cantado nas curvas de um céu pintado com a pureza das cores primárias, pleno de tons e de meios-tons, uma espécie de responso intangível, invisível, onde cada palavra é dita até ao fim, sugerida ou sussurrada, mas dita até ao fim do Mundo. A cada fado a voz muda de intensidade e muda de timbre, só a solenidade de uma alma feita para o Fado se mantém imperturbável, sensível, constante na plenitude de uma angústia que sobrevoa Lisboa com a urgência de existir. É como pegar no coração e colocá-lo no palco ao alcance de cada mão.

E agora que a cidade suja se vem sentar junto ao rio, e agora que a cidade celeste se encosta no Castelo, e agora que a cidade viva canta bem alto a malícia eterna de uma voz que se cala para sempre, há um gramofone abandonado no Terreiro do Paço que persiste em espalhar pela cidade a respiração inscrita na memória de uma vida, um pedaço de Lisboa que se encosta no vidro de cada casa, a figura de um fadista que ecoa nos telhados tristes separado do Mundo pela névoa dos fados que desenham na memória a realidade de uma Lisboa que um dia partiu do cais e que um dia chegou ao cais.

O Fado é a eterna partida e a eterna chegada. Há os que partem no anonimato de uma espécie de talento perdido numa personalidade que nunca se encontrou e que tanto se procurou. Carlos do Carmo parte para imediatamente regressar e desmentir a estética do desalento, a nostalgia da vontade, a diplomacia da eternidade. Carlos do Carmo deixa o absurdo de um relógio público parado para enfim habitar exclusivamente o reino do Fado, um reino com capital em Lisboa e povoado de histórias e de sonhos, de luzes e de encantos, avenidas de prédios impossíveis em que as janelas são fados, as casas poemas, os costumes guitarras, as ideias fadistas. Conhecedor mais próximo do eco e do incerto que habita essa Lisboa mítica, vou cruzar-me muitas vezes com Carlos do Carmo nessas noites distraídas. Afinal, há mais um homem na Cidade.

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Fado Carmo

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