Os tribunais estão preparados para as insolvências?

A eficiência dos tribunais faz parte do cálculo económico. Tribunais lentos e sem capacidade de resposta resultarão na “zombificação” e estagnação da economia.

A recuperação da economia portuguesa vai ser lenta. Depois da profunda recessão de 2020, em 2021 a economia portuguesa não recuperará mais do que um terço do valor que perdeu no ano passado. É o que se deduz das estimativas mais recentes para Portugal, publicadas em Dezembro passado pela OCDE e pelo Banco de Portugal, que já incorporam os efeitos da segunda vaga, e que em média apontam para um crescimento de 3% em 2021 depois da contracção de mais de 8% em 2020.

As estimativas daquelas duas instituições para o ano de 2022 são semelhantes às de 2021, pelo que, só lá para o final de 2023, início de 2024, ou talvez mesmo só em 2025, assumindo um cenário mais adverso, é que regressaremos aos níveis pré-pandemia de 2019. Até lá, há um risco considerável: O risco de ocorrer um crescimento exponencial das insolvências.

Na sequência da pandemia vários foram os países que suspenderam as insolvências ou que introduziram mecanismos com o intuito de atrasar a declaração das mesmas. Foi o que sucedeu em Portugal, onde durante a fase inicial do estado de emergência os tribunais estiveram em regime de férias judiciais. Mas o Governo, tendo estabelecido barreiras de acesso à justiça, actuou também noutro campo, criando programas de apoio às empresas e trabalhadores em jeito de compensação pelos danos sofridos com o estado de emergência. Em face das medidas implementadas, a acção governamental deveria ter levado a uma diminuição do número de insolvências decretadas em Portugal. Todavia, diferentes fontes sugerem diferentes evoluções do mesmo fenómeno.

Os números do Ministério da Justiça sobre as insolvências decretadas em Portugal não coincidem exactamente com os dados europeus sobre Portugal nesta matéria. Segundo a direcção geral de política de justiça, o número de insolvências decretadas em Portugal no segundo trimestre de 2020 diminuiu cerca de 35% face ao período homólogo. Atente-se que os dados do Ministério da Justiça incluem pessoas jurídicas singulares e pessoas colectivas. Já os números do Eurojust, referindo-se apenas às empresas, dão-nos conta de um aumento (em vez de uma diminuição) das falências em Portugal em cerca de 13%. Nesta classificação do Eurojust, Portugal foi mesmo um dos poucos países na Europa onde as falências empresariais aumentaram.

Antes da pandemia, segundo dados do Banco de Portugal, os lucros das empresas em Portugal representavam em média cerca de 5% do volume de negócios total e cerca de um quarto das empresas operava com capitais próprios negativos – estavam tecnicamente falidas, ou insolventes. Com a contracção da actividade em 2020, e com o aumento dos custos operacionais, a rentabilidade média das empresas em Portugal é hoje muito provavelmente negativa. Nestas circunstâncias, avizinhando-se uma recuperação lenta, as insolvências só podem crescer, sobretudo à medida que os apoios extraordinários forem sendo retirados. Isto vai trazer pressão acrescida sobre um sistema judicial que já não dava vazão antes da pandemia, quanto mais agora.

A lentidão de um processo de insolvência é dos piores vícios de que o mesmo pode padecer. Curiosamente, em Portugal, a declaração de insolvência até é célere, demorando em média apenas dois meses. O pior é o resto do tempo que se demora até que todas as etapas do processo estejam finalmente concluídas, ou seja, até ao chamado “visto em correição”. Aqui os prazos médios mudam dramaticamente e são de bradar aos céus. De acordo com a direcção geral da política de justiça, falamos aqui de um prazo médio de 66 meses – cinco anos e meio! – até ao “visto em correição”. Trata-se de um prazo médio (repito, prazo médio!) que tem vindo a crescer todos os anos desde 2013, sem que se vislumbre o que anda o Governo a fazer nesta matéria, e que constitui a antítese do que um processo de insolvência deveria ser. Resta acrescentar que a taxa de recuperação de crédito é de 11% dos créditos reconhecidos.

Em 2019 foi aprovada a nova directiva europeia de reestruturação e insolvência de empresas (EU 2019/1023). Portugal, de alguma forma, parece ter-se antecipado, não na sua transposição imediata, mas sim na criação de um novo mecanismo de reestruturação designado como “processo extraordinário de viabilização económica” (PEVE). Este vem juntar-se ao RERE (regime extrajudicial de recuperação de empresas) e ao PER (processo especial de revitalização). O SIREVE (sistema de recuperação de empresas por via extrajudicial) foi revogado em 2018. Mas o PEVE mal nasceu e já as críticas às suas complexas regras de aplicação se fazem sentir. A complexidade legislativa está-nos infelizmente na massa do sangue e a ineficiência do sistema judicial não ajuda.

No domínio da insolvência, estão envolvidas várias discussões, de natureza económica e também filosófica, de elevada complexidade. Antes de mais, sobretudo no espírito da nova directiva, que aposta na viabilização empresarial, subsiste uma dúvida fundamental sobre o significado da expressão “viabilidade económica”. O que é viável para uns não será para outros. É uma discussão na qual o legislador se não deve meter, da qual deve manter-se expressamente afastado, e que se resolve deixando-a ao critério das partes envolvidas ou de um árbitro designado para o efeito. Mas a discussão maior nem é essa. A discussão maior reside no equilíbrio a atingir entre os direitos dos credores e a ideia de uma segunda oportunidade que a viabilização empresarial poderá oferecer aos devedores.

Ultrapassadas as questões anteriores, que, admitamos, não são fáceis de resolver, onde o processo de reestruturação ou de insolvência não pode mesmo emperrar é na parte jurídico-administrativa. Se assim acontecer, correr-se-á o risco de afastar de todos aqueles mecanismos de reestruturação as empresas que, apesar de tudo, têm alguma chance de viabilização. Se a expectativa de partida for a complexidade e a morosidade processuais, conduzindo à redução do valor dos activos da empresa insolvente, então, tanto credores como devedores terão um incentivo perverso no sentido de encetarem a fuga para a frente na esperança de algum golpe de sorte.

A eficiência dos tribunais faz assim parte do cálculo económico. Tribunais lentos e sem capacidade de resposta resultarão na “zombificação” e estagnação da economia.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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