A pandemia e o drama empresarial

A capacidade de resposta dos tribunais de insolvência para a avalanche que se avizinha e a falta de capital do nosso tecido empresarial são dois fatores de risco elevados no contexto da pandemia.

Com novo confinamento geral à vista, avizinha-se uma vaga de falências em 2021. As contas são fáceis de fazer. Antes da pandemia, os resultados líquidos das empresas em Portugal situavam-se em redor de 5% do volume de negócios. Com a pandemia o balanço mudou. Em 2020, o índice de volume de negócios total da economia portuguesa terá diminuído cerca de 10% e em alguns sectores, em particular nos serviços, a devastação terá sido muitíssimo superior. É o caso do alojamento e restauração, mas não só. Também as actividades de transporte e armazenamento, consultoria, e actividades administrativas terão sofrido perdas pesadas.

O sector dos serviços está especialmente em apuros. Até Novembro do ano passado, o índice de volume de negócios nos serviços publicado pelo INE apresentou uma contracção de 15% face ao período homólogo. No caso do alojamento e restauração a contracção da actividade foi de quase 50% face a Novembro de 2019. São variações dramáticas que aniquilam qualquer negócio. Milhares de pequenos empresários estarão seguramente a viver momentos de grande inquietação. A pressão sobre a tesouraria deve ser enorme. De resto, se há grupo que tem sido mais afectado pela crise, esse grupo é o dos sócios-gerentes de pequenos negócios.

A economia portuguesa está descapitalizada. A prova disto está na situação financeira de uma grande parte das empresas nacionais. Antes da pandemia, cerca de 25% do número total de empresas encontrava-se tecnicamente falida, ou seja, exibia activos inferiores aos passivos (e, consequentemente, capitais próprios negativos). Agora, o número aumentou. Estamos numa situação em que muitas empresas vão ter de reestruturar ou liquidar. É por isso que é tão importante o enquadramento jurídico no domínio das insolvências e dos mecanismos preventivos das mesmas.

Em Portugal encontram-se previstos três mecanismos de reestruturação preventiva com vista ao afastamento do cenário de insolvência empresarial. Estes são: o PER (processo especial de revitalização), o RERE (regime extrajudicial de recuperação de empresas) e o novo PEVE (processo extraordinário de viabilização económica). Relativamente à duração média destes mecanismos, apenas existem estatísticas para a duração dos PER: em média, um PER corre termos durante seis meses, sendo que 61% terminam por acordo. Aqui reside, de resto, uma observação à direcção de políticas da justiça: falta transparência nos dados da justiça.

As diferenças entre os diferentes mecanismos estabelecem-se em três grandes domínios: o grau de intervenção dos tribunais, as maiorias de credores necessárias para despoletar os mecanismos, e a adesão voluntária ou involuntária dos credores aos planos de reestruturação. No RERE, dada a sua natureza extrajudicial, não existe recurso a administrador judicial e a adesão dos credores é voluntária. No PER e no PEVE sucede o oposto: em ambos ocorre nomeação de administrador judicial e a adesão ao acordo por parte dos credores poderá tornar-se obrigatória caso as regras de maioria sejam verificadas.

A prevenção da insolvência através da reestruturação prévia é hoje um traço característico da generalidade dos ordenamentos jurídicos. Todavia, as regras são frequentemente complexas, caracterizadas pela existência de procedimentos complexos, assentes em equilíbrios difíceis de obter entre devedores e credores, o que transforma a reestruturação preventiva, sobretudo quando é de natureza judicial, num processo moroso e impróprio para a generalidade das empresas. Resta assim a opção de fim de linha – a insolvência.

Os tribunais de insolvência não estão preparados para a avalanche que se avizinha. O prazo médio de duração de um processo de insolvência, do início ao fim, é hoje de 66 meses (em média!). Trata-se de um prazo que nos faz parecer muito mal face ao resto do mundo desenvolvido. São cinco anos e meio à espera de um desfecho e no final a recuperação de crédito corresponde a somente 11% do total de créditos reconhecidos. Para além da morosidade processual, que tende a prejudicar a recuperação de crédito, são anos que se perdem até que o juiz de insolvência finalmente encerre o processo que, recorde-se, pode resultar na inibição dos gestores das empresas insolventes sempre que a insolvência é culposa.

As soluções para esta ineficiência judicial não são fáceis de prescrever. Aliás, se as leis existentes fossem levadas à letra a situação seria até muito pior. Isto porque, existindo 25% do número total de empresas em falência técnica, se a lei fosse levada à letra todas essas empresas estariam obrigadas a apresentarem-se à insolvência por se encontrarem, de facto, nessa circunstância. De resto, constitui uma certa ironia que o novo PEVE permita às micro e pequenas empresas, tecnicamente falidas em 31 de Dezembro de 2019 (pré-pandemia), o acesso ao referido mecanismo, quando sobre essas empresas recaía já o dever de apresentação à insolvência.

Há uma dimensão de modernização administrativa e de digitalização na justiça que poderá acelerar a execução dos processos. A própria liquidação da massa falida pode também ser mais expedita, permitindo de igual modo uma mais célere distribuição aos credores dos pagamentos resultantes da venda da massa falida (rateios). A este propósito, saúda-se a decisão do Governo em tornar obrigatório o pagamento de rateios parciais aos credores sempre que em depósito se encontrem quantias superiores a determinando montante (10 mil euros). A medida, se implementada, porá termo aos atrasos de pagamento aos credores que ali se concentravam.

Mas há uma fragilidade que nem o melhor sistema judicial debelará: a falta de capital do nosso tecido empresarial. Sobre isto, uma nota final: há empresas que não se reestruturam porque, desde logo, não têm dinheiro para pagar indemnizações de despedimento aos trabalhadores. No caso destas empresas, só há dois caminhos: a fuga para a frente ou a insolvência. Como as fugas para a frente raramente dão bom resultado, o caminho estreita-se e acaba na insolvência com os trabalhadores a arderem. Enfim, talvez se justificasse regressar ao célebre artigo 35º e levar aquilo a sério. Isso e voltar a olhar para o Fundo de Compensação do Trabalho…

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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