A put do Musk

A Tesla anunciou a compra de 1,5 mil milhões de dólares de bitcoin e levou este ativo digital para máximos históricos. Parafraseando Elon Musk, a bitcoin vai tornar-se a “moeda do mundo”. Vai mesmo?

Já muito se escreveu sobre o assunto, mas permitam-me que contribua com a minha modesta opinião. Não existe qualquer incentivo para Bancos Centrais e/ou Governos legitimarem como moeda, um ativo digital descentralizado, seja bitcoin (BTC) ou outro. Eventualmente, fará sentido importarem algumas das características tecnológicas destes ativos digitais para a moeda que emitem.

Para os crentes, a BTC tem características para ser moeda (meio de troca, unidade de conta e reserva de valor), mas permitam-me discordar:

Enquanto meio de troca, e apesar de ser um caso de sucesso de decentralized financed e aplicação de blockchain na indústria financeira, atualmente a rede de BTC processa diariamente uma quantidade residual de transações quando comparada com os sistemas de pagamentos normais e com um custo associado enorme (estima-se que, anualmente, a rede BTC consuma tanta energia como a Noruega). Com o mundo financeiro cada vez mais preocupado com critérios Environmental, Social and Govenrance (ESG), e mesmo admitindo potenciais futuros avanços na tecnologia de base, o problema ambiental é incontornável. A legitimidade deste custo depende do valor que damos à segurança e descentralização desta rede. É certo que BTC pode ser transacionado em outras redes, mas estas serão sempre menos descentralizadas para aumentar a sua eficiência;

Enquanto unidade de conta, ter um sistema de preços definido em BTC seria, no curto prazo, simplesmente infernal para a generalidade da população, dada volatilidade do ativo. Acresce que o sistema de oferta fixa de BTC (só podem ser emitidas no limite 21 milhões de BTC, e muitas já se perderam) é uma ideia há muito desmontada em política monetária.

Estes sistemas geram pressão deflacionária, seja porque os consumidores, à medida que nos aproximamos do limite superior preferem aforrar a consumir, seja porque a quantidade de moeda não acompanha o crescimento da economia e da população. Invariavelmente, os sistemas de oferta fixa colapsam, porque não ofereceram à Sociedade a flexibilidade necessária para responder a crises que necessitam de uma resposta monetária.

Os limites de oferta de moeda acabam por ser revistos, defraudando a promessa inicial e, com isso, a credibilidade do sistema. Se algum dia BTC se tornasse a “moeda do mundo”, a proposição do máximo de emissão estaria apenas à espera de ser testada, afinal é apenas mais um conjunto de linhas de programação. A imutabilidade de BTC já foi testada no passado, tendo existido uma separação em dois ativos diferentes por consenso da rede (não implicou mais BTC emitidas, mas mostra que também aqui as regras podem mudar);

Enquanto reserva de valor, admito que BTC tenha esse estatuto para alguns agentes económicos que apreciem as suas características, a comparação habitual é o ouro (muito associado ao processo de criação de BTC e à sua quantidade finita).

Para muitos, o facto de ser um ativo digital, com baixos custos de custódia, descentralizado e independente de bancos centrais transformam-no numa boa alternativa ao ouro e a outros ativos de reserva tradicionais. Como em qualquer ativo, se existirem indivíduos suficientes que valorizem a sua posse, a sua consideração como reserva de valor é uma possibilidade. Não esquecer que parte da procura por BTC não pode ser dissociada do facto de ser um sistema paralelo e sem o escrutínio habitual, pelo que pode atrair transações menos lícitas ou que beneficiem de menos transparência.

Atualmente, a única razão que sustém a valorização de BTC é a sua procura por indivíduos, na expectativa de um dia venderem BTC por um valor mais elevado ou agentes em busca de anonimato face ao sistema tradicional, uma vez que não há quaisquer expectativas de “dividendos” futuros (nem podem existir) ou um uso relevante como moeda. Adicionalmente, existe sempre a possibilidade de aparecer um novo ativo digital a competir por estes espaços e ainda a provável rejeição explícita de alguns bancos centrais sobre a possibilidade de BTC ser moeda. Por tudo isto, o ciclo de ganhos dos últimos anos pode ser interrompido. É de notar que o mercado me tem provado errado, dado que tenho esta visão desde 2013 quando 1 BTC ainda rondava os 100Usd!

A discussão sobre a adoção de BTC como “moeda do mundo” parece-me ferida de racional e incentivos económicos. Ouso acrescentar que num mundo cada vez mais preocupado, e bem, com a desigualdade da distribuição de riqueza, a adoção de BTC como “moeda do mundo” seria uma das maiores transferências de riqueza que alguma vez observámos. Os 99,9999% da população que não detêm BTC teriam que comprar BTC aos 0,0001% da população que a detêm para poderem participar no sistema. Não nos esqueçamos da génese de BTC, em que o 1º bloco minado vinha com uma profunda mensagem pró Occupy Wall Street (seria só marketing?). Seria, por isso, uma grande ironia.

A evolução do sistema financeiro e monetário é necessariamente um processo contínuo, visto que ambos os sistemas existem para responder a problemas e necessidades da Sociedade. Por esta ordem de ideias, existem três temas, que diferem da consideração de BTC como moeda, que me parecem merecer reflexão e debate alargado:

  1. BTC, e outros ativos digitais, são uma nova classe de ativos de fácil acesso por todos os investidores. O entendimento como ativo financeiro tem vindo a ser confirmado por reguladores e supervisores em todo o mundo, mas devem ser clarificadas todas as implicações fiscais deste estatuto. Adicionalmente, a experiência de mercado do último mês, relembra-nos como ativos financeiros sobem e descem facilmente, especialmente aqueles com movimentos de preço mais parabólicos. A conjugação de movimentos de mercado abruptos com a falta de literacia financeira e a visão míope de alguns grupos de investidores pode levar à realização de perdas avultadas que prejudicam a reputação dos mercados financeiros como um todo.
  2. Mesmo sem serem legitimados por Estados, não há razão para impedir, quem queira, de armazenar toda a sua riqueza em BTC, ou qualquer outro ativo, e a troque por moeda sempre que necessário, apesar da ineficiência fiscal que isso acarretará. É provável que BTC continue a ser visto por muitos como concorrência à moeda fiduciária e uma alternativa para a transação de valores, em paralelo ao sistema tradicional. Como tal, não é expectável que o preço destes ativos seja zero ou mesmo que desapareçam. Cabe então à Sociedade refletir sobre como gerir estas redes paralelas de transação de valor e perceber de que forma se pode garantir o mesmo escrutínio e regras que existem no sistema financeiro tradicional, para assegurar que não vivem à parte do Estado de Direito (ex: fugas a controlos capitais, financiamento ao terrorismo e branqueamento de capitais, financiamento de atividades ilegais, etc.).
  3. Os bancos centrais das principais moedas de reserva (Eur, Usd, entre outros) já estão a ponderar a introdução, ou até já a fazê-lo, de moeda digital de banco central (mdbc). Ou seja, estão a aferir se existe algum benefício na introdução de características destes ativos digitais na atual circulação monetária. Por exemplo, o BCE lançou recentemente uma consulta pública sobre a introdução de mdbc na zona euro o que pode ter, dependendo do modelo a ser adotado, enormes implicações societárias (privacidade, sigilo bancário) e financeiras (captação de depósitos e concessão de crédito). Este será um tema central do debate financeiro e económico no mundo pós-pandemia, mas esses desafios ficam para uma próxima coluna.

Na gíria dos mercados financeiros, há um velho adágio apelidado de “Greespan Put”, em honra do banqueiro central Norte Americano, que tinha a convicção de que evitar quedas abruptas nos mercados acionistas era fundamental para a estabilidade da economia mundial. Teoricamente, os investidores beneficiam do conforto (e confiança) concedida pelo banco central que lhes garante o valor dos ativos comprados, dado que aquele tudo faria para evitar a sua queda abrupta. Obviamente, este direito de venda (Put) ao Banco Central não existe explicitamente, mas pode ser interpretado das ações do Banco Central. Os acontecimentos recentes levam-me a crer que Musk pode estar para o mercado de BTC como Greenspan, e sucessores, estão para os mercados financeiros. Caso haja alguma correção abrupta, pode ser que o buyer of last resort esteja finalmente definido e os investidores tenham o seu “direito de venda” assegurado.

Termino constatando o óbvio, sou um cético sobre o fenómeno BTC e afins, apesar de o mercado me contrariar diariamente. Para mim, e no que toca a BTC, mesmo a put do Musk não é suficiente para me tornar um crente.

Notas:
Por opção própria, o autor tenta escrever segundo o novo acordo ortográfico, com o sucesso possível.

As opiniões aqui expressas vinculam somente o autor e não refletem as posições da Raize ou da Nova School of Business and Economics.

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